Oscar Wilde (1854-1900)


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Em 1965 li sua obra completa, basicamente teatro, contos e poemas. Minhas preferências são muitas, e delas destaco O Retrato de Doryan Gray, Salomé, o breve conto O Rouxinol e a Rosa e seu poema maior, A Balada do Cárcere de Reading.

A melhor e mais curta descrição de seu talento está na resposta de Winston Churchill à pergunta de quem ele gostaria de encontrar quando fosse para o céu, ou para o inferno. Sem hesitar Churchill repondeu – Oscar Wilde, é claro.
Vou abreviá-lo em algumas poucas palavras. Wilde era um duplo “gozador”, da vida e da sociedade, e um lírico com toques de dramaticidade. Um homem dos salões, de trajes impecáveis, hedonista corruptível, grande conversador, irônico e, acima de tudo, um escritor fenomenal, criativo.
Após incidentes envolvendo seu affair com Lord Alfred Douglas (o Bosie), foi condenado por atentado ao pudor e à moral pública a dois anos de trabalhos forçados. Na prisão escreve seu poema primoA Balada do Cárcere de Reading, e De Profundis, uma longa e melancólica carta destinada à Lord Douglas, a quem responsabiliza pelo seu destino trágico.

Dentre todos os poemas, a “Balada...” ainda permanece sendo um dos que eu mais releio. A estrofe abaixo é para incitar o leitor à leitura completa dessa obra maestra.

Yet each man kills the thing he loves
By each let this be heard,
Some do it with a bitter look,
Some with a flattering word,
The coward does it with a kiss,
The brave man with a sword!
No entanto cada um mata o que adora:
o seu amor, o seu ideal.
Alguns com uma palavra de lisonja,
outros com um frio olhar brutal.
O covarde assassina dando um beijo,
O bravo mata com um punhal.
***
Oscar WildeStatue Bea
Minha amiga Beatrice com Oscar em Galway, Irlanda, 2008
*** 
A seguir, a ode inteira, na ótima tradução de Gondin da Fonseca:
por C. 3. 3. (número do prisioneiro O. Wilde) - À memória de C.T.W.
Soldado que foi da Real Guarda Montada.
Morreu na Prisão de Sua Majestade, Reading, Berkshire
7 de julho de 1896.

                        I
Ele despira a túnica vermelha;
mas sangue púrpuro, encarnado,
sangue e vinho das mãos lhe gotejavam,
quando o viram, alucinado,
junto do leito dela, - o seu amor,
seu pobre amor apunhalado.

Ia andando entre os mais, e era cinzento
o traje velho que vestia.
Usava um gorro às listas, e o seu passo
ligeiro e alegre parecia.
Porém eu nunca vi homem que olhasse,
tão pensativo, a luz do dia.

Jamais, jamais vi homem contemplar,
com tão profundo sentimento,
essa breve, essa estreita faixa azul
que os presos chamam firmamento:
e as nuvens brancas, velas cor de prata,
vogando no ar, flutuando ao vento!

Eu, com outras almas angustiadas, ia
andando em pátio separado,
a cismar qual o crime, grande ou leve,
por que o teriam condenado,
- quando alguém sussurrou atrás de mim:
«vão pendurar esse coitado!»

Jesus! as próprias grades da prisão
rodam, de súbito, em delírio!
Pesa o céu sobre mim, qual elmo de aço
que o Sol inflama, - ardente círio!
E a minha alma, de mágoa trespassada,
esquece, olvida o seu martírio.

Eu soube, então, a ideia lacerante
que o atormenta, e o faz correr,
e o faz olhar, tristonho, o céu radiante,
radiante, e alheio ao seu sofrer:
ele matou aquela que adorava,
- por causa disso vai morrer.

No entanto (ouvi!) cada um mata o que adora:
o seu amor, o seu ideal.
Alguns com uma palavra de lisonja,
outros com um frio olhar brutal.
O covarde assassina dando um beijo,
o bravo mata com um punhal.

Uns matam o Amor velhos; outros, jovens;
(quando o amor finda, ou o amor começa);
matam-no alguns com a mão do Ouro, e alguns
com a mão da Carne, - a mão possessa!
E os mais bondosos, esses apunhalam,
- que a morte, assim, vem mais depressa.

Uns vendem, outros compram; uns amam pouco,
noutros, o Amor dura de mais;
uns enterram-no aos ais, vertendo pranto,
outros sem prantos e sem ais:
todo o homem mata o Amor; porém, nem sempre,
nem sempre as sortes são iguais.

Nem sempre ele padece morte infame,
por um dia trágico e baço,
o capuz na cabeça, e na garganta
a corda fria, o hórrido laço;
nem fica a balançar, do alto de um poste,
- soltos os pés e as mãos no espaço.

Nem vai sentar-se entre homens silenciosos,
que estão imóveis, de vigia,
ou procure rezar, ou chore, triste,
em amaríssima agonia:
a sua vida é presa da prisão,
- ah, não a roube ele algum dia!

Nem vê ao despertar, sombras estranhas
cruzando a sua húmida cela:
o Capelão, de branco e vacilante,
mais o Xerife, atroz, que o vela;
e o Director, de luto, como a Sorte,
- a face pálida, amarela.

Nem tem de erguer-se arrebatadamente,
vestir as roupas da prisão,
enquanto algum doutor, boçal, lhe espia
a mais ligeira contorção,
- com o tiquetaque hostil do seu relógio
a martelar-lhe o coração!

Nem vai sentir, fogosa, na garganta,
uma secura imitigável,
antes que o Algoz, soturno, abrindo a porta,
- hirto, enluvado, inexorável, -
o ate com três correias, pra que nunca
sofra mais sede, o insaciável!

nem tem de ouvir, curvado, o Ofício Fúnebre,
Ofício Fúnebre de morto;
nem, pensando que ainda não morreu,
contemplará, transido, absorto,
o seu próprio caixão, entrando, lento,
no seu antro de Desconforto.

Nem, por tecto de vidro, enxergará,
do dia, a luz ténue e fugaz;
nem a Deus rogará, com lábios secos,
breve agonia, - o Sono, a Paz;
nem sentirá, na sua face trémula,
o beijo torpe de Caifaz.
                           I I
Seis semanas inteiras ele andou
com a veste usada que trazia.
Tinha um gorro de listas, e o seu passo
ligeiro e alegre parecia;
porém eu nunca vi homem que olhasse,
tão pensativo, a luz do dia.

Jamais, jamais vi homem contemplar,
com tão profundo sentimento,
essa breve, essa estreita faixa azul
que os presos chamam firmamento;
e as nuvens esgarçadas no horizonte,
- flocos de espuma errando ao vento!

Não retorcia as mãos, - tal como alguns
de ideia curta, e alma louçã,
que ousam crer, mesmo em negro Desespero,
numa Quimera estulta e vã:
ele fitava, calmo, a luz da aurora
sorvendo o ar puro da manhã.

Não retorcia as mãos e não chorava,
nem lamentava o seu inferno;
ia, apenas, bebendo o ar como um bálsamo,
bálsamo bom, bálsamo eterno...
Abria os lábios e bebia o Sol,
como uma taça de falerno.

E eu, e todos os mais, - nós que penávamos
num outro pátio separado,
esquecemos de pronto as nossas faltas,
a nossa Sorte, o nosso Fado,
para seguir, com olhar de assombro, esse homem
que ia, entre nós, ser enforcado!

E era estranho que o víssemos andando,
- tão leve e alegre parecia...
E era estranho que o víssemos fitando,
tão pensativo, a luz do dia.
E era estranho lembrar que ele, a sua dívida,
de tal maneira a pagaria.

Tem lindas folhas o álamo e o carvalho,
que em Maio brotam viridentes;
mas é medonha a força, - a árvore negra,
raiz mordida de serpentes:
e verde ou seca, morre o condenado
sem lhe avistar frutos pendentes.

É para o céu, para o azulado empíreo,
que o anseio humano se alevanta!
Mas quem, do alto da forca, atado a um laço,
com a corda presa na garganta,
ergue seu turvo olhar ao firmamento
quando o carrasco se adianta?

Dançar, ao som de um violino, enleva,
se a Vida é bela e é belo o Amor;
dançar, ao som de flautas e alaúdes,
é raro, fino, embalador...
Mas é horrível, no ar, com os pés ligeiros,
dançar, num último estertor!

Curiosamente, mudos, consternados,
o vigiávamos dia a dia,
pensando que talvez nosso destino
igual ao dele acabaria:
pois ninguém sabe a que horroroso inferno
a Sorte bárbara nos guia.

Por fim, deixei de vê-lo entre os mais presos,
sempre sozinho, vagamundo...
Soube então que o levaram; que jazia
em negro cárcere profundo,
e que eu, jamais, de novo o enxergaria,
neste belo, divino mundo...

Dois navios perdidos que se cruzam
em ruim paragem tormentosa,
- nós nos cruzámos, mudos, sem um gesto,
numa atitude silenciosa:
pois de dia nos vimos (não de noite)
e a luz é casta, é vergonhosa.

Muros de uma prisão nos circundavam,
éramos réus por nossos danos.
Deus e o seu mundo, inexoravelmente,
nos repeliram desumanos;
e a sinistra armadilha do Pecado
nos seduziu com seus enganos.
                        I I I
É um forte, o Pátio dos Endividados:
muralhas frias, pedra dura.
Lá passeava ele ao ar, sob o céu plúmbeo,
entre dois guardas de clausura,
temerosos que o preso lhes morresse
de qualquer morte prematura.

Ou sentava-se entre esses que à sua dor
sempre ficavam de vigia,
quer de joelhos rezasse, quer se erguesse
para chorar sua agonia;
- não fosse ele roubar-lhes uma vida
que só à forca pertencia.

O Director timbrava em executar
a letra do Regulamento;
para o Doutor, a morte era, em ciência,
um banal acontecimento;
- duas vezes por dia o Capelão
deixava um opúsculo ao detento...

Duas vezes por dia ele fumava
o cachimbo, e bebia um trago.
Sentia a alma valente, e sem lugar
para o pavor, o medo aziago:
e dizia esperar, ânimo alegre,
do Carrasco o sinistro afago.

Mas nenhum guarda nunca perguntou
a razão desse estranho gosto...
Ó Guardas da Cadeia! Quem por sorte,
quem por sorte ocupe esse posto,
deve trazer nos lábios um cadeado
e andar de máscara no rosto.

Pois de outra forma se comoveria,
tentaria uma frase amena...
Mas no «Antro de Homicidas», que diria
da Caridade a voz serena?
Que palavra de alívio ela traria
a uma alma irmã, nessa geena?

Cadenciados, marchando em volta ao pátio,
nós somos loucos em parada!
Que importa? Bem sabemos que Satã
é o general desta Brigada.
Lenta, arrastando os pés, cabelo curto,
lá vem a alegre mascarada!

Desfiamos cordas alcatroadas, rijas,
- unhas gastas, dedos sangrentos;
esfregamos o chão, limpamos portas,
e metais claros, espelhentos;
e enxaguamos, aos turnos, o assoalhado,
batendo baldes barulhentos.

Cosemos sacos e quebramos pedras,
furamos tábuas com uma pua.
Tinem marmitas; cantos se misturam;
gira o moinho, e a gente sua...
Mas dentro da nossa alma, um terror mudo,
um terror grande se insinua.

Por isso os dias correm lentos, como
vagas, rolando com sargaços!
E nós nos esquecemos do Destino,
que os homens vis prendem em seus laços,
- quando, ao vir do trabalho, um dia, vemos
uma cova, ante os nossos passos.

Boca amarela e rude, ela bradava
por uma vítima; e, feroz,
a terra hostil pedia sangue ao pátio,
- pedia sangue, em alta voz!
Ah! logo vimos que ao romper da aurora
iria à forca um dentre nós.

Recolhemo-nos todos, a alma atenta
à Morte, à Sorte, e ao Medo infando.
O Algoz passou com o seu pequeno saco,
na treva os passos arrastando;
e cada qual, na tumba numerada,
se enfiou, trémulo e cismando.

Nos longos corredores, essa noite,
a Sombra e o Medo erraram juntos;
pelo Antro Férreo, passos se sentiam,
sem som, furtivos, desconjuntos...
E por fora das frades, espiavam
faces macabras de defuntos.

E ele dormia calmo, como quem
dorme em Abril, numa clareira.
Os que, de noite, o sono lhe vigiavam,
não sabiam de que maneira
podia alguém dormir, tão sossegado,
e com o Carrasco à cabeceira.

Não há, porém, repouso, quando choram
os que nunca verteram pranto!
Assim, nós, criminosos, nós velámos,
(noite sem fim, de Horror e Espanto!)
e a angústia alheia, - a Dor no-la estendeu
por sobre as almas, como um manto.

Ai! do Pecado de outrem, como é dura,
como é terrível a expiação!
Ai! com o gládio do Mal envenenado,
varando o nosso coração,
- que lágrimas de fogo não chorámos
pelo crime daquele irmão!

Com sapatos de feltro, às nossas portas
passavam, mudos, os rondantes;
e viam, surpreendidos, pelas frestas,
formas humanas, vacilantes:
e estranhavam por que é que erguiam preces,
esses que nunca oraram dantes!

Loucos, velando um morto, nós rezámos,
ajoelhados, fitando o céu.
A escuridão da noite, parecia
de uma essa negra o negro véu.
E era esponja embebida em vinho amargo,
o Remorso de cada réu.

Cantaram galos, rubros e cinzentos,
sem que rompesse o dia após...
Tortuosas formas tétricas, nas celas,
nos transiam de horror atroz:
e os espíritos maus da noite morta,
riam, pulando em frente de nós.

E rápidos giravam, deslizavam,
como viandantes na neblina.
Imitavam a Lua, contorcendo-se
em pose grácil, feminina:
e, passos nobres, elegância odiosa,
chegavam outros em surdina.

Alegres, trejeitando, e de mãos dadas,
entram, de súbito, em ciranda!
Rodopiam fantasmas em delírio,
numa grotesca sarabanda;
e, caricatos, fazem arabescos,
como o vento na areia branda!

Com piruetas gentis de marionetes,
leves, levíssimos bailavam!
Era estridente a música do medo
com que o seu baile acompanhavam:
e para despertar na cova os mortos,
alto, bem alto, eles cantavam:

«Oh! – diziam – o mundo é largo. A viagem,
para os trôpegos, é enfadonha!
Jogar os dados uma ou duas vezes,
é de bom-tom, gente bisonha!
Mas, ai! perde quem joga com o Pecado,
na oculta Casa da Vergonha.»

Não eram sombras vãs, esses fantoches,
volteando em doida alacridade!
Para nós, - vidas presas na Prisão,
pés tolhidos, sem liberdade,
eram, - senhor do Céu ! – entes bem vivos
e de execranda fealdade!

Sempre ao redor, valsavam contorcendo-se:
alguns, giravam com seus pares;
outros subiam, ágeis, as escadas,
em atitudes singulares...
E outros arremedavam nossas preces,
rindo, a zombar, fazendo esgares.

Gemia o vento da manhã, lá fora,
mas a noite, sem arrebol,
em seu tear gigante inda tecia,
da treva, o fúnebre lençol!
E nós, a orar, sofríamos, temendo
a Justiça clara do Sol.

Gemia o vento em volta das muralhas
do húmido cárcere infernal;
e o Tempo, enfim, moveu-se, - como roda
de aço, a girar no vendaval.
Ó vento soluçante! que fizemos,
para te ter por senescal?

Por fim, a sombra amarga da janela,
- ferros cruzados em xadrez,
ante o meu catre, na parede branca,
foi surgindo, com timidez...
Vi que a aurora de Deus, tremendamente,
rompera, algures, outra vez.

Varremos, às seis horas, nossos quartos;
e às sete, como em pesadelo,
um bater de asas, forte, encheu os ares,
passou, num trágico arrepelo.
Era o Senhor da Morte que chegava,
com frio hálito de gelo.

E não chegou, pomposo, em corcel branco,
manto de rei, de arminho e penas.
Bastam à forca uns metros, só, de esparto,
e uma tábua, das mais pequenas...
Para o trabalho oculto, o Arauto veio
com a corda da Desonra apenas.

Éramos como quem, num brejo escuro,
a tactear, trémulo avança.
Nem já tínhamos ânimo de orar,
nem de entrever paz e bonança!
Morrera dentro em nós alguma coisa:
morrera, em nós, nossa Esperança.

A Justiça dos Homens, firmemente,
segue na sua arremetida:
implacável, severa, vai levando
o forte e o fraco de vencida:
- com calcanhar de ferro esmaga o forte,
a monstruosa parricida!

O toque das oito horas aguardámos,
cheios de sede, - ardor aflito!
pois o toque das oito é o Destino
com que nasceu o homem maldito;
e o Destino usa sempre a mesma corda,
para o justo e para o precito.

Só tínhamos, sentados, que esperar
por esse toque ameaçador...
Pedras soltas, num vale abandonado,
era sem fim nosso torpor:
mas, agitado, o coração batia,
como um demente num tambor!

Súbito, na Prisão, bate o relógio,
e o som, pelo ar, vibra espantoso!
E um gemido de dor, de desespero,
ecoa, lúgubre, estrondoso,
- qual o grito que lança, num paul
a boca negra de um leproso!

Como quem, no cristal claro de um sonho,
vê uma tragédia apavorante,
assim vimos a corda gordurosa
balançar, no poste infamante;
e ouvimos a oração, que o nó do Algoz
cortou, num grito lancinante.

Eu compreendi, melhor do que ninguém,
aquele grito amargo e forte,
e o seu remorso, e o seu suor de sangue,
e a angústia, o horror da sua sorte!
- Pois o que vive mais do que uma vida,
deve morrer mais do que uma morte.
                         I V
Não há ofício, no dia em que na forca
um dentre nós cumpre a sua sina:
ou sente, o Capelão, pálida a face,
ou grande dor d´alma o domina;
ou, coisas que ninguém deve saber,
inda lhe bailam na retina.

Meio-dia era já, quando vibrou
do sino o toque funerário!
A cada qual, espiando, os guardas abrem
a cela, - e em passo tumultuário,
vamos descendo a férrea escada, livres
do nosso inferno sedentário.

Fomos andando ao ar suave de Deus,
mas, como dantes, ninguém ia;
- pois, faces brancas uns, outras cinzentas,
o medo nelas transluzia!
E eu nunca vi ninguém olhar assim,
ansiosamente, a luz do dia.

Eu nunca vi ninguém olhar assim,
com tão profundo sentimento,
essa breve, essa estreita faixa azul
que os presos chamam firmamento.
E as nuvens, sem cuidado, ao longe, no ar,
felizes, livres como o vento!

Mas, entre nós, havia uns que marchavam
cabisbaixos, alma aflitiva,
sabendo bem que a forca mereciam,
pois sua falta era excessiva:
mataram uma coisa morta, e o outro,
- apenas uma coisa viva.

O que peca segunda vez acorda,
para a Dor, uma alma dormente:
tira-a do seu sudário maculado,
e a faz sangrar sangue vivente;
e a faz sangrar, num jorro largo e forte,
e a faz sangrar inutilmente.

Quais monos e truões, vestes listadas,
bizarramente, uma por uma,
seguimos silenciosos, dando a volta
ao pátio escuro, envolto em bruma;
seguimos, silenciosos, dando a volta,
e ninguém disse coisa alguma.

Seguimos, silenciosos, dando a volta,
e à nossa mente, oca e vazia,
a memória fatal de coisas fúnebres,
um vento fúnebre a trazia;
e o Horror nos enfrentava a cada passo,
e o Terror, bárbaro, o seguia.

Passam guardas de um lado para o outro,
vigiando, espiando a horda de brutos.
Seus uniformas novos, de domingo,
brilham, asseados, impolutos:
mas a cal dos sapatos denuncia
o que fizeram há minutos.

Pois onde a cova tinha sido aberta,
não se notava a menor falha:
só uma faixa de terra e areia fofa,
junto da hórrida muralha;
e um punhado de cal, para servir
ao pobre morto, de mortalha.

Ai! mortalha de cal, abrasadora,
bem pouca gente é que a reclama!
Sob um pátio de cárcere (e despido,
para mais triste e negra fama!)
ele dorme, com os pés acorrentados,
envolto num lençol de chama.

E por tempo sem conta a cal roerá
a carne e os ossos desse irmão:
de noite os ossos duros, e de dia,
a carne mole, em consumpção:
comerá turno a turno a carne e os ossos,
mas, sem cessar, o coração!

Três longos anos, nada irão plantar
nesse local de desventura!
Maldito ficará três longos anos,
maninho estéril de secura!
E olhará, com assombro, o céu azul,
amargamente e sem censura.

Pensam que o coração de quem matou,
tisna a semente dadivosa.
Não! A Terra de Deus é acolhedora,
e, mais que o homem, generosa:
mais rubra floriria a rosa rubra
e mais de neve a nívea rosa!

Brotar-lhe-ia uma rosa cor de sangue
da boca! E, branca, outra do peito!
Quem sabe? Tem Jesus estranhas vias,
e é estranho, às vezes, seu conceito:
- fez outrora, ante um Papa, abrir-se em flores
seco bordão, de um Seu eleito.

Mas, nem rosas vermelhas, nem de neve,
Podem florir nestes terrenos.
Só nos dão cacos, sílex e pedras;
só nos dão mágoas e venenos...
A flor abranda o Desespero aos simples,
- e é crime, aqui, sofrer de menos.

Ah! Jamais rosas brancas ou vermelhas
pétala a pétala cairão
sobre essa lama em que ele dorme, unido
ao muro hediondo da Prisão,
- pra lembrar que Jesus morreu por todos,
a nós, e aos outros que virão!

Contudo, embora a tétrica muralha
o envolva, o cinja em férreo abraço,
e um espírito de pés acorrentados
não possa, à noite, errar no espaço,
mas só chorar, chorar, nessa ímpia terra,
morto de mágoa e de cansaço,

ele dorme em sossego, - o malfeliz!
ou dormirá, dentro de pouco!
Não mais, vendo o Terror em pleno dia,
sofre, e receia ficar louco.
Não mais! a Negra Pátria em que repousa,
não tem, nem sol, nem luar tampouco!

Enforcaram-no, assim como a uma fera!
Nenhum sino dobrou na igreja,
que ao seu transido espírito trouxesse
uma paz doce, benfazeja:
mas depressa o esconderam numa cova,
onde a parede mais negreja.

Despiram-no. Em seguida o abandonaram,
e com sarcástico sorriso,
fitaram-lhe a garganta, inflada e púrpura,
o olhar imóvel, indeciso...
E envolveram-no, após, numa mortalha,
brutos, torcendo-se de riso.

Jamais o Capelão se ajoelharia
na sua campa, que traduz
a desonra, e jamais nela poria
a triste benção de uma Cruz.
- visto ele haver pecado, e ser dos míseros
por quem veio morrer Jesus.

Enfim, tudo acabou. Do Reino Escuro
ele transpôs o limiar.
A urna da Piedade, urna partida,
há-de, por ele, transbordar!
Por ele chorarão todos os réprobos,
esses que sempre hão-de chorar.
                           V
Não sei se as Leis são justas ou se injustas.
Os pobres presos miseráveis
só sabem que as muralhas da prisão
são altas, fortes, invioláveis;
e que um dia é mais longo do que um ano,
- ano de dias infindáveis.

Mas sei que as Leis, que o Homem, para o homem,
fez, com seu ânimo iracundo,
desde o primeiro que matou o irmão,
e deu início à Dor do mundo,
são peneiras que guardam joio vil
e atiram fora o grão fecundo.

E sei também (assim todos soubessem!)
que as paredes de uma Prisão
são feitas com tijolos de ignomínia
e têm grades negras, que são
para Cristo não ver como o Homem trata
barbaramente o seu irmão.

Grades que a lua amável desfiguram,
e o sol, de raios triunfais!
É melhor, sim! que escondam esse inferno:
pois lá se passam coisas tais,
que nem Filho de Deus nem filho de Homem
as deveria olhar jamais.

Como planta daninha, o acto mais vil
floresce bem, no ar da cadeia.
Só o que é bom no homem lá se perde,
só o que é mau lá se granjeia.
Há dentro um guarda: o Desespero; e à porta,
a Angústia fica de alcateia.

Matam de fome as tímidas crianças,
até que chorem noite e dia;
azorragam os fracos e os dementes,
maltratam velhos à porfia.
Uns enlouquecem; todos se pervertem,
- mas ninguém diz a sua agonia.

Cada célula estreita é uma latrina
escura, fétida, nojenta!
Um hálito mortal, fecalizante,
enche a lucarna pardacenta.
Tudo morre; a Luxúria, apenas, vive
e a Humana Máquina atormenta.

A água suja e salobra que bebemos,
lodo e imundície traz consigo.
O pão amargo e escasso, que nos dão,
tem cal e gesso mais que trigo.
E o Sono, sem dormir, pede, em desvairo,
que o Tempo abrande o seu castigo.

Embora em nós a Fome e a Sede lutem,
como serpentes em refrega,
ninguém cuida em sustento. O que nos mata
é, quando desce a noite cega,
sentir cada um, no coração, os blocos
que o dia inteiro ele carrega.

Com meia-noite dentro d´alma, e a cela
num crepúsculo funerário,
damos à manivela e esfiamos a cordas
em nosso inferno sedentário.
E o silêncio é medonho como um sino
a badalar num campanário.

Nunca uma voz amiga vem falar-nos,
meiga, num gesto humano e puro:
o olhar que nos vigia, no postigo,
é impiedoso, áspero e duro:
apodrecemos, - alma e corpo em ruínas,
esquecidos neste monturo.

Arrastando os grilhões férreos da Vida,
vamos, sozinhos, degradados:
um se maldiz; o outro chora; - e seguem
em silêncio, os mais desgraçados;
mas a Divina Lei suaviza e quebra
os corações dos condenados.

E cada um que se quebra na Prisão
é como aquela ânfora cheia,
que outrora se partiu, e o seu tesouro
deu a Jesus da Galileia,
espargindo na casa do Leproso
o olor do nardo da Judeia.

Feliz esse que parte o coração
e ganha a Paz, e ganha o Amor!
Quem, de outra forma, pode libertar-se
do Pecado escravizador?
E onde, a não ser num coração partido,
entra Jesus, Nosso Senhor?

Ah! o morto de garganta inflada e púrpura,
e olhar imóvel, indeciso,
aguarda as santas mãos, que o Bom ladrão
exaltaram no Paraíso:
Deus não despreza os corações contritos,
e é estranho, às vezes, seu juízo.

O homem da lei, vestido de vermelho,
deu-lhe, de vida, três semanas,
para a sua alma conciliar consigo,
e sem ideias ruins, tiranas,
purificar do sangue derramado
as mãos, um dia desumanas.

E ele purificou, chorando sangue,
as rudes mãos de instintos crus:
pois só o sangue lava o próprio sangue
e só o pranto ao Bem reconduz:
e a nódoa rubra de Caim transforma
na branca auréola de Jesus!
                       V I
No cárcere de Reading, junto a um muro,
terra de opróbrio os ossos come
de um desgraçado, envolto num sudário
que o afogueia e que o consome!
É uma campa infamante essa em que jaz,
uma campa que não tem nome!

E aí, até Jesus chamar os mortos,
tranquilamente há-de jazer.
Inútil verter lágrimas inúteis,
e dar suspiros, e gemer.
- Ele matou aquilo que adorava,
teve, por isso, de morrer.

No entanto (ouvi!) cada um mata o que adora:
o seu amor, o seu ideal.
Alguns com uma palavra de lisonja,
outros com um frio olhar brutal.
O covarde assassina dando um beijo,
o bravo mata com um punhal.

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