Euclides da Cunha (1866-1909)

Euclides da Cunha (1866-1909)Euclides_da_cunha_

Euclides da Cunha poderia ter sido um cineasta, tal a vividez de sua narrativa. Cinema puro! Sua descrição do Sertanejo, é para mim a mais bela página da literatura brasileira.

Eu tinha dezesseis anos (1957) quando Mendonça, professor de xadrez do Clube Olympico, em Copacabana, declamava o que era para mim uma poesia. Escutava aquilo espantado, com ouvidos arregalados. Mendonça guardava em seu paletó desbotado as anotações, também desbotadas, da partida que jogara no Brasil com o Grande Mestre russo, Alexander Alekhine, em 1939. Ele resistiu 30 lances. Que orgulho, dele e meu!

Em certas noites, eu costumava recitar trechos de Os Sertões para os colegas geólogos, afeiçoados ao agreste da caatinga nordestina. Combinava com a cachaça, bebida obrigatória após os suarentos trabalhos de campo do nosso dia-a-dia.

 

O Sertanejo (O Homem, Parte III)

 
 

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas.

É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo — cai é o termo — de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.

É o homem permanentemente fatigado.

Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.

Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.

Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja — caracterizado sempre pela intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas.

É impossível idear-se cavaleiro mais chucro e deselegante; sem posição, pernas coladas ao bojo da montaria, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta atitude indolente, acompanhando morosamente, a passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma o "campeão" que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dois terços da existência.

Mas se uma rês "alevantada" envereda, esquiva, adiante, pela caatinga garranchenta, ou se uma ponta de gado, ao longe, se trasmalha, ei-lo em momentos transformado, cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria e partindo como um dardo, atufando-se velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas.

Vimo-lo neste steeple-chase bárbaro.

Não há como contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem quebradas, acervos de pedras, coivaras, moiras de espinhos ou barrancas de ribeirões, nada lhe impede encalçar o garrote desgarrado, porque "por onde passa o boi passa o vaqueiro com o seu cavalo"...

Colado ao dorso deste, confundindo-se com ele, graças a pressão dos jarretes firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando nas macegas altas; saltando valos e ipueiras; vingando cômoros alçados; rompendo, célere, pelos espinheirais mordentes; precipitando-se, a toda brida, no largo dos tabuleiros...

A sua compleição robusta ostenta-se, nesse momento, em toda a plenitude. Como que é o cavaleiro robusto que empresta vigor ao cavalo pequenino e frágil, sustenta-o nas rédeas improvisadas de caroá, suspendendo-o nas esporas, arrojando-o na carreira — estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente, torso colado no arção — "escanchado no rastro" do novilho esquivo: aqui curvando-se agilíssimo, sob um ramalho, que lhe roça quase pela sela; além desmontando, de repente, como um acrobata, agarrado às crinas do animal, para fugir ao embate de um tronco percebido no último momento e galgando, logo depois, num pulo, o selim; — e galopando sempre, através de todos os obstáculos, sopesando à destra sem a perder nunca, sem a deixar no inextricável dos cipoais, a longa aguilhada de ponta de ferro encastoada em couro, que por si só constituiria, noutras mãos, sérios obstáculos à travessia...

Mas terminada a refrega, restituída ao rebanho a rês dominada, ei-lo, de novo caído sobre o lombilho retovado, outra vez desgracioso e inerte, oscilando à feição da andadura lenta com a aparência triste de um inválido esmorecido.

 

Hector Bianciotti (1930- )


Hector Bianciotti (1930- )

hector bianciotti

Escritor nascido na Argentina, emigrou para a França em 1961, e aí se naturalizou em 1981. Desde então passa a escrever unicamente em francês. As razões para isso foram contadas em uma entrevista na Folha de São Paulo, suplemento Mais, de 19 de dezembro de 1993 (parte transcrita abaixo), que me chamou a atenção sobre o que a sonoridade de uma determinada língua pode significar.
Rememorei o linguajar e “accents” que ouvira na Turquia, Grécia, na antiga Iugoslávia, Japão, Coréia, dialetos africanos e pude constatar a influência impressa pela língua na expressão corporal, espiritual e artística das distintas etnias.

O Francês é uma língua que valoriza a intimidade. Quando eu falava o espanhol castiço me dei conta que o corpo todo mudava. Minha postura era outra, tinha um gesto heróico que nada tinha a ver comigo...
Quando a gente diz “o pássaro” em francês,
“l’oiseau”,
é como se o pássaro estivesse no ninho.
Já quando a gente diz
“el pájaro” , em castelhano,
o pássaro está voando”.

Edgar Allan Poe (1809-1849) / Lenore

Edgar Allan Poe (1809-1849)clip_image002[4] / Lenore (1965-)

Escritor e poeta americano, um dos precussores da literatura de gêneros policial e ficção científica.

Viena, 1965. Nasce minha filha Lenore. Seu nome, já havia nascido cinco anos antes, quando li The Raven. Na verdade, o nome fora escolhido pela sua sonoridade e singularidade, à parte da trágica história da heroína do poema.

O poema é bem divulagado na língua portuguesa pelas traduções de Machado de Assis e de Fernando Pessoa. Na tradução de Machado de Assis ficamos emocionados e certos de que acabamos de ler uma obra-prima. A estrofe de seis versos do poema original, em inglês, se transforma em estrofe de dez versos na tradução de Machado. “O esquema inconstante de rimas do poema original se transforma num constante AABBCCDEDE” (*). Contudo, o texto empolga. O mesmo não acontece com a tradução de Fernando Pessoa, muito embora ele tenha mantido a métrica original. No poema de Poe, Lenore aparece oito vezes. Na versão de Fernando Pessoa, nenhuma. Ou seja, o que é de suma importância para o entendimento do "enredo" do poema – a “personagem" Lenore - desaparece por completo na tradução do poeta português. Se eu somente a tivesse lido, minha Lenore não seria Lenore.

 

O Corvo (1845) (Trad. de Machado de Assis)

 
 

Em certo dia, à hora, à hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi à porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras tais:
"É alguém que me bate à porta de mansinho;
Há de ser isso e nada mais."

Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial dezembro;
Cada brasa do lar sobre o chão refletia
A sua última agonia.
Eu, ansioso pelo sol, buscava
Sacar daqueles livros que estudava
Repouso (em vão!) à dor esmagadora
Destas saudades imortais
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenore.
E que ninguém chamará mais.

E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido,
Nunca por ele padecido.
Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,
Levantei-me de pronto, e: "Com efeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
Que bate a estas horas tais.
É visita que pede à minha porta entrada:
Há de ser isso e nada mais.

Minh'alma então sentiu-se forte;
Não mais vacilo e desta sorte
Falo: "Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
Me desculpeis tanta demora.
Mas como eu, precisando de descanso,
Já cochilava, e tão de manso e manso
Batestes, não fui logo, prestemente,
Certificar-me que aí estais."
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Somente a noite, e nada mais.

Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,
Mas o silêncio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra única e dileta,
Lenore, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca sais;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.

Entro coa alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:
"Seguramente, há na janela
Alguma cousa que sussurra. Abramos,
Eia, fora o temor, eia, vejamos
A explicação do caso misterioso
Dessas duas pancadas tais.
Devolvamos a paz ao coração medroso,
Obra do vento e nada mais."

Abro a janela, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortesias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima voa dos portais,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;
Trepado fica, e nada mais.

Diante da ave feia e escura,
Naquela rígida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me ali por um momento,
E eu disse: "O tu que das noturnas plagas
Vens, embora a cabeça nua tragas,
Sem topete, não és ave medrosa,
Dize os teus nomes senhoriais;
Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

Vendo que o pássaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico atônito, embora a resposta que dera
Dificilmente lha entendera.
Na verdade, jamais homem há visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
Num busto, acima dos portais,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: "Nunca mais".

No entanto, o corvo solitário
Não teve outro vocabulário,
Como se essa palavra escassa que ali disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: "Perdi outrora
Tantos amigos tão leais!
Perderei também este em regressando a aurora."
E o corvo disse: "Nunca mais!"

Estremeço. A resposta ouvida
É tão exata! é tão cabida!
"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência
Que ele trouxe da convivência
De algum mestre infeliz e acabrunhado
Que o implacável destino há castigado
Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
Que dos seus cantos usuais
Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,
Esse estribilho: "Nunca mais".

Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: "Nunca mais".

Assim posto, devaneando,
Meditando, conjeturando,
Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,
Sentia o olhar que me abrasava.
Conjeturando fui, tranqüilo a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lâmpada caíam,
Onde as tranças angelicais
De outra cabeça outrora ali se desparziam,
E agora não se esparzem mais.

Supus então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de serafins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro turíbulo invisível;
E eu exclamei então: "Um Deus sensível
Manda repouso à dor que te devora
Destas saudades imortais.
Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenore."
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
Onde reside o mal eterno,
Ou simplesmente náufrago escapado
Venhas do temporal que te há lançado
Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo
Tem os seus lares triunfais,
Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"
E o corvo disse: "Nunca mais".

“Profeta, ou o que quer que sejas!
Ave ou demônio que negrejas!
Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!
Por esse céu que além se estende,
Pelo Deus que ambos adoramos, fala,
Dize a esta alma se é dado inda escutá-la
No éden celeste a virgem que ela chora
Nestes retiros sepulcrais,
Essa que ora nos céus anjos chamam Lenore!”
E o corvo disse: "Nunca mais."

“Ave ou demônio que negrejas!
Profeta, ou o que quer que sejas!
Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
Regressa ao temporal, regressa
À tua noite, deixa-me comigo.
Vai-te, não fique no meu casto abrigo
Pluma que lembre essa mentira tua.
Tira-me ao peito essas fatais
Garras que abrindo vão a minha dor já crua."
E o corvo disse: "Nunca mais".

E o corvo aí fica; ei-lo trepado
No branco mármore lavrado
Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demônio sonhando. A luz caída
Do lampião sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e, fora
Daquelas linhas funerais
Que flutuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!

 
 

***

LENORE

 
 

Ah, broken is the golden bowl! the spirit flown forever!
Let the bell toll! -a saintly soul floats on the Stygian river -
And, Guy De Vere, hast thou no tear? -weep now or never more!
See! on yon drear and rigid bier low lies thy love, Lenore!
Come! let the burial rite be read -the funeral song be sung! -
An anthem for the queenliest dead that ever died so young -
A dirge for her, the doubly dead in that she died so young.

"Wretches! ye loved her for her wealth and hated her for her pride,
And when she fell in feeble health, ye blessed her -that she died!
How shall the ritual, then, be read? -the requiem how be sung
By you -by yours, the evil eye, -by yours, the slanderous tongue
That did to death the innocence that died, and died so young?"

Peccavimus; but rave not thus! and let a Sabbath song
Go up to God so solemnly the dead may feel no wrong!
The sweet Lenore hath "gone before," with Hope, that flew beside,
Leaving thee wild for the dear child that should have been thy bride -
For her, the fair and debonnaire, that now so lowly lies,
The life upon her yellow hair but not within her eyes -
The life still there, upon her hair -the death upon her eyes.

Avaunt! tonight my heart is light. No dirge will I upraise,
But waft the angel on her flight with a paean of old days!
Let no bell toll! -lest her sweet soul, amid its hallowed mirth,
Should catch the note, as it doth float up from the damned Earth.
To friends above, from fiends below, the indignant ghost is riven -
From Hell unto a high estate far up within the Heaven -
From grief and groan to a golden throne beside the King of Heaven."

 

(*) Ver resenha de Sinvaldo Júnior (artigo O Ensinamentos de Poe) do livro A filosofia da composição, onde Edgar Allan Poe comenta questões centrais da construção do clássico poema O Corvo.

Oscar Wilde (1854-1900)


clip_image002Oscar Wilde (1854-1900)

Em 1965 li sua obra completa, basicamente teatro, contos e poemas. Minhas preferências são muitas, e delas destaco O Retrato de Doryan Gray, Salomé, o breve conto O Rouxinol e a Rosa e seu poema maior, A Balada do Cárcere de Reading.

A melhor e mais curta descrição de seu talento está na resposta de Winston Churchill à pergunta de quem ele gostaria de encontrar quando fosse para o céu, ou para o inferno. Sem hesitar Churchill repondeu – Oscar Wilde, é claro.
Vou abreviá-lo em algumas poucas palavras. Wilde era um duplo “gozador”, da vida e da sociedade, e um lírico com toques de dramaticidade. Um homem dos salões, de trajes impecáveis, hedonista corruptível, grande conversador, irônico e, acima de tudo, um escritor fenomenal, criativo.
Após incidentes envolvendo seu affair com Lord Alfred Douglas (o Bosie), foi condenado por atentado ao pudor e à moral pública a dois anos de trabalhos forçados. Na prisão escreve seu poema primoA Balada do Cárcere de Reading, e De Profundis, uma longa e melancólica carta destinada à Lord Douglas, a quem responsabiliza pelo seu destino trágico.

Dentre todos os poemas, a “Balada...” ainda permanece sendo um dos que eu mais releio. A estrofe abaixo é para incitar o leitor à leitura completa dessa obra maestra.

Yet each man kills the thing he loves
By each let this be heard,
Some do it with a bitter look,
Some with a flattering word,
The coward does it with a kiss,
The brave man with a sword!
No entanto cada um mata o que adora:
o seu amor, o seu ideal.
Alguns com uma palavra de lisonja,
outros com um frio olhar brutal.
O covarde assassina dando um beijo,
O bravo mata com um punhal.
***
Oscar WildeStatue Bea
Minha amiga Beatrice com Oscar em Galway, Irlanda, 2008
*** 
A seguir, a ode inteira, na ótima tradução de Gondin da Fonseca:
por C. 3. 3. (número do prisioneiro O. Wilde) - À memória de C.T.W.
Soldado que foi da Real Guarda Montada.
Morreu na Prisão de Sua Majestade, Reading, Berkshire
7 de julho de 1896.

                        I
Ele despira a túnica vermelha;
mas sangue púrpuro, encarnado,
sangue e vinho das mãos lhe gotejavam,
quando o viram, alucinado,
junto do leito dela, - o seu amor,
seu pobre amor apunhalado.

Ia andando entre os mais, e era cinzento
o traje velho que vestia.
Usava um gorro às listas, e o seu passo
ligeiro e alegre parecia.
Porém eu nunca vi homem que olhasse,
tão pensativo, a luz do dia.

Jamais, jamais vi homem contemplar,
com tão profundo sentimento,
essa breve, essa estreita faixa azul
que os presos chamam firmamento:
e as nuvens brancas, velas cor de prata,
vogando no ar, flutuando ao vento!

Eu, com outras almas angustiadas, ia
andando em pátio separado,
a cismar qual o crime, grande ou leve,
por que o teriam condenado,
- quando alguém sussurrou atrás de mim:
«vão pendurar esse coitado!»

Jesus! as próprias grades da prisão
rodam, de súbito, em delírio!
Pesa o céu sobre mim, qual elmo de aço
que o Sol inflama, - ardente círio!
E a minha alma, de mágoa trespassada,
esquece, olvida o seu martírio.

Eu soube, então, a ideia lacerante
que o atormenta, e o faz correr,
e o faz olhar, tristonho, o céu radiante,
radiante, e alheio ao seu sofrer:
ele matou aquela que adorava,
- por causa disso vai morrer.

No entanto (ouvi!) cada um mata o que adora:
o seu amor, o seu ideal.
Alguns com uma palavra de lisonja,
outros com um frio olhar brutal.
O covarde assassina dando um beijo,
o bravo mata com um punhal.

Uns matam o Amor velhos; outros, jovens;
(quando o amor finda, ou o amor começa);
matam-no alguns com a mão do Ouro, e alguns
com a mão da Carne, - a mão possessa!
E os mais bondosos, esses apunhalam,
- que a morte, assim, vem mais depressa.

Uns vendem, outros compram; uns amam pouco,
noutros, o Amor dura de mais;
uns enterram-no aos ais, vertendo pranto,
outros sem prantos e sem ais:
todo o homem mata o Amor; porém, nem sempre,
nem sempre as sortes são iguais.

Nem sempre ele padece morte infame,
por um dia trágico e baço,
o capuz na cabeça, e na garganta
a corda fria, o hórrido laço;
nem fica a balançar, do alto de um poste,
- soltos os pés e as mãos no espaço.

Nem vai sentar-se entre homens silenciosos,
que estão imóveis, de vigia,
ou procure rezar, ou chore, triste,
em amaríssima agonia:
a sua vida é presa da prisão,
- ah, não a roube ele algum dia!

Nem vê ao despertar, sombras estranhas
cruzando a sua húmida cela:
o Capelão, de branco e vacilante,
mais o Xerife, atroz, que o vela;
e o Director, de luto, como a Sorte,
- a face pálida, amarela.

Nem tem de erguer-se arrebatadamente,
vestir as roupas da prisão,
enquanto algum doutor, boçal, lhe espia
a mais ligeira contorção,
- com o tiquetaque hostil do seu relógio
a martelar-lhe o coração!

Nem vai sentir, fogosa, na garganta,
uma secura imitigável,
antes que o Algoz, soturno, abrindo a porta,
- hirto, enluvado, inexorável, -
o ate com três correias, pra que nunca
sofra mais sede, o insaciável!

nem tem de ouvir, curvado, o Ofício Fúnebre,
Ofício Fúnebre de morto;
nem, pensando que ainda não morreu,
contemplará, transido, absorto,
o seu próprio caixão, entrando, lento,
no seu antro de Desconforto.

Nem, por tecto de vidro, enxergará,
do dia, a luz ténue e fugaz;
nem a Deus rogará, com lábios secos,
breve agonia, - o Sono, a Paz;
nem sentirá, na sua face trémula,
o beijo torpe de Caifaz.
                           I I
Seis semanas inteiras ele andou
com a veste usada que trazia.
Tinha um gorro de listas, e o seu passo
ligeiro e alegre parecia;
porém eu nunca vi homem que olhasse,
tão pensativo, a luz do dia.

Jamais, jamais vi homem contemplar,
com tão profundo sentimento,
essa breve, essa estreita faixa azul
que os presos chamam firmamento;
e as nuvens esgarçadas no horizonte,
- flocos de espuma errando ao vento!

Não retorcia as mãos, - tal como alguns
de ideia curta, e alma louçã,
que ousam crer, mesmo em negro Desespero,
numa Quimera estulta e vã:
ele fitava, calmo, a luz da aurora
sorvendo o ar puro da manhã.

Não retorcia as mãos e não chorava,
nem lamentava o seu inferno;
ia, apenas, bebendo o ar como um bálsamo,
bálsamo bom, bálsamo eterno...
Abria os lábios e bebia o Sol,
como uma taça de falerno.

E eu, e todos os mais, - nós que penávamos
num outro pátio separado,
esquecemos de pronto as nossas faltas,
a nossa Sorte, o nosso Fado,
para seguir, com olhar de assombro, esse homem
que ia, entre nós, ser enforcado!

E era estranho que o víssemos andando,
- tão leve e alegre parecia...
E era estranho que o víssemos fitando,
tão pensativo, a luz do dia.
E era estranho lembrar que ele, a sua dívida,
de tal maneira a pagaria.

Tem lindas folhas o álamo e o carvalho,
que em Maio brotam viridentes;
mas é medonha a força, - a árvore negra,
raiz mordida de serpentes:
e verde ou seca, morre o condenado
sem lhe avistar frutos pendentes.

É para o céu, para o azulado empíreo,
que o anseio humano se alevanta!
Mas quem, do alto da forca, atado a um laço,
com a corda presa na garganta,
ergue seu turvo olhar ao firmamento
quando o carrasco se adianta?

Dançar, ao som de um violino, enleva,
se a Vida é bela e é belo o Amor;
dançar, ao som de flautas e alaúdes,
é raro, fino, embalador...
Mas é horrível, no ar, com os pés ligeiros,
dançar, num último estertor!

Curiosamente, mudos, consternados,
o vigiávamos dia a dia,
pensando que talvez nosso destino
igual ao dele acabaria:
pois ninguém sabe a que horroroso inferno
a Sorte bárbara nos guia.

Por fim, deixei de vê-lo entre os mais presos,
sempre sozinho, vagamundo...
Soube então que o levaram; que jazia
em negro cárcere profundo,
e que eu, jamais, de novo o enxergaria,
neste belo, divino mundo...

Dois navios perdidos que se cruzam
em ruim paragem tormentosa,
- nós nos cruzámos, mudos, sem um gesto,
numa atitude silenciosa:
pois de dia nos vimos (não de noite)
e a luz é casta, é vergonhosa.

Muros de uma prisão nos circundavam,
éramos réus por nossos danos.
Deus e o seu mundo, inexoravelmente,
nos repeliram desumanos;
e a sinistra armadilha do Pecado
nos seduziu com seus enganos.
                        I I I
É um forte, o Pátio dos Endividados:
muralhas frias, pedra dura.
Lá passeava ele ao ar, sob o céu plúmbeo,
entre dois guardas de clausura,
temerosos que o preso lhes morresse
de qualquer morte prematura.

Ou sentava-se entre esses que à sua dor
sempre ficavam de vigia,
quer de joelhos rezasse, quer se erguesse
para chorar sua agonia;
- não fosse ele roubar-lhes uma vida
que só à forca pertencia.

O Director timbrava em executar
a letra do Regulamento;
para o Doutor, a morte era, em ciência,
um banal acontecimento;
- duas vezes por dia o Capelão
deixava um opúsculo ao detento...

Duas vezes por dia ele fumava
o cachimbo, e bebia um trago.
Sentia a alma valente, e sem lugar
para o pavor, o medo aziago:
e dizia esperar, ânimo alegre,
do Carrasco o sinistro afago.

Mas nenhum guarda nunca perguntou
a razão desse estranho gosto...
Ó Guardas da Cadeia! Quem por sorte,
quem por sorte ocupe esse posto,
deve trazer nos lábios um cadeado
e andar de máscara no rosto.

Pois de outra forma se comoveria,
tentaria uma frase amena...
Mas no «Antro de Homicidas», que diria
da Caridade a voz serena?
Que palavra de alívio ela traria
a uma alma irmã, nessa geena?

Cadenciados, marchando em volta ao pátio,
nós somos loucos em parada!
Que importa? Bem sabemos que Satã
é o general desta Brigada.
Lenta, arrastando os pés, cabelo curto,
lá vem a alegre mascarada!

Desfiamos cordas alcatroadas, rijas,
- unhas gastas, dedos sangrentos;
esfregamos o chão, limpamos portas,
e metais claros, espelhentos;
e enxaguamos, aos turnos, o assoalhado,
batendo baldes barulhentos.

Cosemos sacos e quebramos pedras,
furamos tábuas com uma pua.
Tinem marmitas; cantos se misturam;
gira o moinho, e a gente sua...
Mas dentro da nossa alma, um terror mudo,
um terror grande se insinua.

Por isso os dias correm lentos, como
vagas, rolando com sargaços!
E nós nos esquecemos do Destino,
que os homens vis prendem em seus laços,
- quando, ao vir do trabalho, um dia, vemos
uma cova, ante os nossos passos.

Boca amarela e rude, ela bradava
por uma vítima; e, feroz,
a terra hostil pedia sangue ao pátio,
- pedia sangue, em alta voz!
Ah! logo vimos que ao romper da aurora
iria à forca um dentre nós.

Recolhemo-nos todos, a alma atenta
à Morte, à Sorte, e ao Medo infando.
O Algoz passou com o seu pequeno saco,
na treva os passos arrastando;
e cada qual, na tumba numerada,
se enfiou, trémulo e cismando.

Nos longos corredores, essa noite,
a Sombra e o Medo erraram juntos;
pelo Antro Férreo, passos se sentiam,
sem som, furtivos, desconjuntos...
E por fora das frades, espiavam
faces macabras de defuntos.

E ele dormia calmo, como quem
dorme em Abril, numa clareira.
Os que, de noite, o sono lhe vigiavam,
não sabiam de que maneira
podia alguém dormir, tão sossegado,
e com o Carrasco à cabeceira.

Não há, porém, repouso, quando choram
os que nunca verteram pranto!
Assim, nós, criminosos, nós velámos,
(noite sem fim, de Horror e Espanto!)
e a angústia alheia, - a Dor no-la estendeu
por sobre as almas, como um manto.

Ai! do Pecado de outrem, como é dura,
como é terrível a expiação!
Ai! com o gládio do Mal envenenado,
varando o nosso coração,
- que lágrimas de fogo não chorámos
pelo crime daquele irmão!

Com sapatos de feltro, às nossas portas
passavam, mudos, os rondantes;
e viam, surpreendidos, pelas frestas,
formas humanas, vacilantes:
e estranhavam por que é que erguiam preces,
esses que nunca oraram dantes!

Loucos, velando um morto, nós rezámos,
ajoelhados, fitando o céu.
A escuridão da noite, parecia
de uma essa negra o negro véu.
E era esponja embebida em vinho amargo,
o Remorso de cada réu.

Cantaram galos, rubros e cinzentos,
sem que rompesse o dia após...
Tortuosas formas tétricas, nas celas,
nos transiam de horror atroz:
e os espíritos maus da noite morta,
riam, pulando em frente de nós.

E rápidos giravam, deslizavam,
como viandantes na neblina.
Imitavam a Lua, contorcendo-se
em pose grácil, feminina:
e, passos nobres, elegância odiosa,
chegavam outros em surdina.

Alegres, trejeitando, e de mãos dadas,
entram, de súbito, em ciranda!
Rodopiam fantasmas em delírio,
numa grotesca sarabanda;
e, caricatos, fazem arabescos,
como o vento na areia branda!

Com piruetas gentis de marionetes,
leves, levíssimos bailavam!
Era estridente a música do medo
com que o seu baile acompanhavam:
e para despertar na cova os mortos,
alto, bem alto, eles cantavam:

«Oh! – diziam – o mundo é largo. A viagem,
para os trôpegos, é enfadonha!
Jogar os dados uma ou duas vezes,
é de bom-tom, gente bisonha!
Mas, ai! perde quem joga com o Pecado,
na oculta Casa da Vergonha.»

Não eram sombras vãs, esses fantoches,
volteando em doida alacridade!
Para nós, - vidas presas na Prisão,
pés tolhidos, sem liberdade,
eram, - senhor do Céu ! – entes bem vivos
e de execranda fealdade!

Sempre ao redor, valsavam contorcendo-se:
alguns, giravam com seus pares;
outros subiam, ágeis, as escadas,
em atitudes singulares...
E outros arremedavam nossas preces,
rindo, a zombar, fazendo esgares.

Gemia o vento da manhã, lá fora,
mas a noite, sem arrebol,
em seu tear gigante inda tecia,
da treva, o fúnebre lençol!
E nós, a orar, sofríamos, temendo
a Justiça clara do Sol.

Gemia o vento em volta das muralhas
do húmido cárcere infernal;
e o Tempo, enfim, moveu-se, - como roda
de aço, a girar no vendaval.
Ó vento soluçante! que fizemos,
para te ter por senescal?

Por fim, a sombra amarga da janela,
- ferros cruzados em xadrez,
ante o meu catre, na parede branca,
foi surgindo, com timidez...
Vi que a aurora de Deus, tremendamente,
rompera, algures, outra vez.

Varremos, às seis horas, nossos quartos;
e às sete, como em pesadelo,
um bater de asas, forte, encheu os ares,
passou, num trágico arrepelo.
Era o Senhor da Morte que chegava,
com frio hálito de gelo.

E não chegou, pomposo, em corcel branco,
manto de rei, de arminho e penas.
Bastam à forca uns metros, só, de esparto,
e uma tábua, das mais pequenas...
Para o trabalho oculto, o Arauto veio
com a corda da Desonra apenas.

Éramos como quem, num brejo escuro,
a tactear, trémulo avança.
Nem já tínhamos ânimo de orar,
nem de entrever paz e bonança!
Morrera dentro em nós alguma coisa:
morrera, em nós, nossa Esperança.

A Justiça dos Homens, firmemente,
segue na sua arremetida:
implacável, severa, vai levando
o forte e o fraco de vencida:
- com calcanhar de ferro esmaga o forte,
a monstruosa parricida!

O toque das oito horas aguardámos,
cheios de sede, - ardor aflito!
pois o toque das oito é o Destino
com que nasceu o homem maldito;
e o Destino usa sempre a mesma corda,
para o justo e para o precito.

Só tínhamos, sentados, que esperar
por esse toque ameaçador...
Pedras soltas, num vale abandonado,
era sem fim nosso torpor:
mas, agitado, o coração batia,
como um demente num tambor!

Súbito, na Prisão, bate o relógio,
e o som, pelo ar, vibra espantoso!
E um gemido de dor, de desespero,
ecoa, lúgubre, estrondoso,
- qual o grito que lança, num paul
a boca negra de um leproso!

Como quem, no cristal claro de um sonho,
vê uma tragédia apavorante,
assim vimos a corda gordurosa
balançar, no poste infamante;
e ouvimos a oração, que o nó do Algoz
cortou, num grito lancinante.

Eu compreendi, melhor do que ninguém,
aquele grito amargo e forte,
e o seu remorso, e o seu suor de sangue,
e a angústia, o horror da sua sorte!
- Pois o que vive mais do que uma vida,
deve morrer mais do que uma morte.
                         I V
Não há ofício, no dia em que na forca
um dentre nós cumpre a sua sina:
ou sente, o Capelão, pálida a face,
ou grande dor d´alma o domina;
ou, coisas que ninguém deve saber,
inda lhe bailam na retina.

Meio-dia era já, quando vibrou
do sino o toque funerário!
A cada qual, espiando, os guardas abrem
a cela, - e em passo tumultuário,
vamos descendo a férrea escada, livres
do nosso inferno sedentário.

Fomos andando ao ar suave de Deus,
mas, como dantes, ninguém ia;
- pois, faces brancas uns, outras cinzentas,
o medo nelas transluzia!
E eu nunca vi ninguém olhar assim,
ansiosamente, a luz do dia.

Eu nunca vi ninguém olhar assim,
com tão profundo sentimento,
essa breve, essa estreita faixa azul
que os presos chamam firmamento.
E as nuvens, sem cuidado, ao longe, no ar,
felizes, livres como o vento!

Mas, entre nós, havia uns que marchavam
cabisbaixos, alma aflitiva,
sabendo bem que a forca mereciam,
pois sua falta era excessiva:
mataram uma coisa morta, e o outro,
- apenas uma coisa viva.

O que peca segunda vez acorda,
para a Dor, uma alma dormente:
tira-a do seu sudário maculado,
e a faz sangrar sangue vivente;
e a faz sangrar, num jorro largo e forte,
e a faz sangrar inutilmente.

Quais monos e truões, vestes listadas,
bizarramente, uma por uma,
seguimos silenciosos, dando a volta
ao pátio escuro, envolto em bruma;
seguimos, silenciosos, dando a volta,
e ninguém disse coisa alguma.

Seguimos, silenciosos, dando a volta,
e à nossa mente, oca e vazia,
a memória fatal de coisas fúnebres,
um vento fúnebre a trazia;
e o Horror nos enfrentava a cada passo,
e o Terror, bárbaro, o seguia.

Passam guardas de um lado para o outro,
vigiando, espiando a horda de brutos.
Seus uniformas novos, de domingo,
brilham, asseados, impolutos:
mas a cal dos sapatos denuncia
o que fizeram há minutos.

Pois onde a cova tinha sido aberta,
não se notava a menor falha:
só uma faixa de terra e areia fofa,
junto da hórrida muralha;
e um punhado de cal, para servir
ao pobre morto, de mortalha.

Ai! mortalha de cal, abrasadora,
bem pouca gente é que a reclama!
Sob um pátio de cárcere (e despido,
para mais triste e negra fama!)
ele dorme, com os pés acorrentados,
envolto num lençol de chama.

E por tempo sem conta a cal roerá
a carne e os ossos desse irmão:
de noite os ossos duros, e de dia,
a carne mole, em consumpção:
comerá turno a turno a carne e os ossos,
mas, sem cessar, o coração!

Três longos anos, nada irão plantar
nesse local de desventura!
Maldito ficará três longos anos,
maninho estéril de secura!
E olhará, com assombro, o céu azul,
amargamente e sem censura.

Pensam que o coração de quem matou,
tisna a semente dadivosa.
Não! A Terra de Deus é acolhedora,
e, mais que o homem, generosa:
mais rubra floriria a rosa rubra
e mais de neve a nívea rosa!

Brotar-lhe-ia uma rosa cor de sangue
da boca! E, branca, outra do peito!
Quem sabe? Tem Jesus estranhas vias,
e é estranho, às vezes, seu conceito:
- fez outrora, ante um Papa, abrir-se em flores
seco bordão, de um Seu eleito.

Mas, nem rosas vermelhas, nem de neve,
Podem florir nestes terrenos.
Só nos dão cacos, sílex e pedras;
só nos dão mágoas e venenos...
A flor abranda o Desespero aos simples,
- e é crime, aqui, sofrer de menos.

Ah! Jamais rosas brancas ou vermelhas
pétala a pétala cairão
sobre essa lama em que ele dorme, unido
ao muro hediondo da Prisão,
- pra lembrar que Jesus morreu por todos,
a nós, e aos outros que virão!

Contudo, embora a tétrica muralha
o envolva, o cinja em férreo abraço,
e um espírito de pés acorrentados
não possa, à noite, errar no espaço,
mas só chorar, chorar, nessa ímpia terra,
morto de mágoa e de cansaço,

ele dorme em sossego, - o malfeliz!
ou dormirá, dentro de pouco!
Não mais, vendo o Terror em pleno dia,
sofre, e receia ficar louco.
Não mais! a Negra Pátria em que repousa,
não tem, nem sol, nem luar tampouco!

Enforcaram-no, assim como a uma fera!
Nenhum sino dobrou na igreja,
que ao seu transido espírito trouxesse
uma paz doce, benfazeja:
mas depressa o esconderam numa cova,
onde a parede mais negreja.

Despiram-no. Em seguida o abandonaram,
e com sarcástico sorriso,
fitaram-lhe a garganta, inflada e púrpura,
o olhar imóvel, indeciso...
E envolveram-no, após, numa mortalha,
brutos, torcendo-se de riso.

Jamais o Capelão se ajoelharia
na sua campa, que traduz
a desonra, e jamais nela poria
a triste benção de uma Cruz.
- visto ele haver pecado, e ser dos míseros
por quem veio morrer Jesus.

Enfim, tudo acabou. Do Reino Escuro
ele transpôs o limiar.
A urna da Piedade, urna partida,
há-de, por ele, transbordar!
Por ele chorarão todos os réprobos,
esses que sempre hão-de chorar.
                           V
Não sei se as Leis são justas ou se injustas.
Os pobres presos miseráveis
só sabem que as muralhas da prisão
são altas, fortes, invioláveis;
e que um dia é mais longo do que um ano,
- ano de dias infindáveis.

Mas sei que as Leis, que o Homem, para o homem,
fez, com seu ânimo iracundo,
desde o primeiro que matou o irmão,
e deu início à Dor do mundo,
são peneiras que guardam joio vil
e atiram fora o grão fecundo.

E sei também (assim todos soubessem!)
que as paredes de uma Prisão
são feitas com tijolos de ignomínia
e têm grades negras, que são
para Cristo não ver como o Homem trata
barbaramente o seu irmão.

Grades que a lua amável desfiguram,
e o sol, de raios triunfais!
É melhor, sim! que escondam esse inferno:
pois lá se passam coisas tais,
que nem Filho de Deus nem filho de Homem
as deveria olhar jamais.

Como planta daninha, o acto mais vil
floresce bem, no ar da cadeia.
Só o que é bom no homem lá se perde,
só o que é mau lá se granjeia.
Há dentro um guarda: o Desespero; e à porta,
a Angústia fica de alcateia.

Matam de fome as tímidas crianças,
até que chorem noite e dia;
azorragam os fracos e os dementes,
maltratam velhos à porfia.
Uns enlouquecem; todos se pervertem,
- mas ninguém diz a sua agonia.

Cada célula estreita é uma latrina
escura, fétida, nojenta!
Um hálito mortal, fecalizante,
enche a lucarna pardacenta.
Tudo morre; a Luxúria, apenas, vive
e a Humana Máquina atormenta.

A água suja e salobra que bebemos,
lodo e imundície traz consigo.
O pão amargo e escasso, que nos dão,
tem cal e gesso mais que trigo.
E o Sono, sem dormir, pede, em desvairo,
que o Tempo abrande o seu castigo.

Embora em nós a Fome e a Sede lutem,
como serpentes em refrega,
ninguém cuida em sustento. O que nos mata
é, quando desce a noite cega,
sentir cada um, no coração, os blocos
que o dia inteiro ele carrega.

Com meia-noite dentro d´alma, e a cela
num crepúsculo funerário,
damos à manivela e esfiamos a cordas
em nosso inferno sedentário.
E o silêncio é medonho como um sino
a badalar num campanário.

Nunca uma voz amiga vem falar-nos,
meiga, num gesto humano e puro:
o olhar que nos vigia, no postigo,
é impiedoso, áspero e duro:
apodrecemos, - alma e corpo em ruínas,
esquecidos neste monturo.

Arrastando os grilhões férreos da Vida,
vamos, sozinhos, degradados:
um se maldiz; o outro chora; - e seguem
em silêncio, os mais desgraçados;
mas a Divina Lei suaviza e quebra
os corações dos condenados.

E cada um que se quebra na Prisão
é como aquela ânfora cheia,
que outrora se partiu, e o seu tesouro
deu a Jesus da Galileia,
espargindo na casa do Leproso
o olor do nardo da Judeia.

Feliz esse que parte o coração
e ganha a Paz, e ganha o Amor!
Quem, de outra forma, pode libertar-se
do Pecado escravizador?
E onde, a não ser num coração partido,
entra Jesus, Nosso Senhor?

Ah! o morto de garganta inflada e púrpura,
e olhar imóvel, indeciso,
aguarda as santas mãos, que o Bom ladrão
exaltaram no Paraíso:
Deus não despreza os corações contritos,
e é estranho, às vezes, seu juízo.

O homem da lei, vestido de vermelho,
deu-lhe, de vida, três semanas,
para a sua alma conciliar consigo,
e sem ideias ruins, tiranas,
purificar do sangue derramado
as mãos, um dia desumanas.

E ele purificou, chorando sangue,
as rudes mãos de instintos crus:
pois só o sangue lava o próprio sangue
e só o pranto ao Bem reconduz:
e a nódoa rubra de Caim transforma
na branca auréola de Jesus!
                       V I
No cárcere de Reading, junto a um muro,
terra de opróbrio os ossos come
de um desgraçado, envolto num sudário
que o afogueia e que o consome!
É uma campa infamante essa em que jaz,
uma campa que não tem nome!

E aí, até Jesus chamar os mortos,
tranquilamente há-de jazer.
Inútil verter lágrimas inúteis,
e dar suspiros, e gemer.
- Ele matou aquilo que adorava,
teve, por isso, de morrer.

No entanto (ouvi!) cada um mata o que adora:
o seu amor, o seu ideal.
Alguns com uma palavra de lisonja,
outros com um frio olhar brutal.
O covarde assassina dando um beijo,
o bravo mata com um punhal.

Marcel Proust (1871-1922) / John Ruskin (1819-1900)

 

 

Marcel Proust (1871-1922)

John Ruskin (1819-1900)

 

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Uma conexão Proust - Ruskin

Maria Antônia, minha irmã, após ter descoberto o autor de Em Busca do Tempo Perdido, lá pelo fim dos anos 1950, foi a Paris em 1960 buscar Proust.  Achou outra coisa… melhor – o Carlos. Por sua influência, data desse período minha leitura saltada de No Caminho de Swann e de A Prisioneira. Li apenas trechos, mas nunca me esqueci da sua poderosa e longa narrativa sobre seus devaneios no quarto na hora de dormir, sobre o sono, o acordar com sono e o estado de vigília, aquele momento que não é ainda, mas é quase. E é claro que passei os olhos na famosa passagem em que o narrador come uma "madeleine" (tipo de bolinho) molhada no chá e vê sua consciência mergulhar no passado.

Marcel Proust era um entusiasta do crítico de arte inglesa John Ruskin, tendo traduzido parte de sua obra para o francês. Gandhi disse que Ruskin foi a maior influência em sua vida. Para se ter uma idéia de sua dimensão basta citar seu trabalho monumental, Modern Painters, compreendendo cinco volumes escritos durante dezessete anos. Sua reputação surgiu desde o lançamento do primeiro volume, em 1843, com apenas vinte e quatro anos de idade. É considerado o crítico mais influente da cultura inglesa.

Descobri Ruskin, em 1987, folheando dois de seus livros em uma livraria de Acra, Gana. Comprei ambos, mas hoje somente resta Unto this Last. Do outro, agora perdido, lembro apenas de alguns trechos, mas não do título. Na mesma livraria, redescobri Proust através do livro The Quest for Proust, de André Maurois – uma detalhada introdução à vida e à obra monumental de Proust – La Récherche du Temp Perdue (3.500 páginas em sete volumes, escrito durante 14 anos!!!).

Rusking foi um dos mais astutos observadores de detalhes em pinturas e do mundo natural. Vem daí nossa afinidade. “Como um crítico quase que impiedoso, em um de seus artigos, ele lamenta que as folhas retratadas nos trabalhos dos pintores Salvator e Poussin apontam, ao mesmo tempo, para um sol a pino e para sombras matinais devidas à luz lateral”. O espectador desavisado absorve essa “falsa” luz pintada com descuido. Desatento aos quadros, o leitor não escapa da compreensão do texto. Segundo Maurois, Proust passou seis anos estudando e traduzindo Rusking, com quem aprendeu a olhar, ver e enxergar as coisas.

Como um discípulo que absorveu tais lições de seu mestre, Proust em seus escritos, que eram verdadeiras escritas pictóricas, não iria cometer qualquer tipo de distração e descuido. Quando ele descreve, em uma página inteira, laboriosamente, aquele instante da vigília, entre o estar desperto e o adormecer, lembra Ruskin em uma descrição longa e minuciosa de uma gota de orvalho percorrendo (a vigília) uma folha silvestre antes de se despencar rumo ao chão (o sono).

Estou agora iniciando Un amour de Swann (1913), presente recente de Maria Antônia (sempre ela) (décima segunda parte do Du côté de chez Swann, que é o primeiro volume da “Recherche”).  Un amour de Swann é publicado como um romance que pode ser lido independentemente do resto da obra. Em 1950, recebeu o “Grand Prix des meilleurs romans du demi-siècle”.

Estarei em boa companhia por algum tempo.

***

 

Trechos do livro No Caminho de Swan

 
 

Combray

Durante muito tempo, deitava-me cedo. Às vezes, mal apagada a vela, meus olhos se fechavam tão depressa que eu nem tinha tempo de pensar: "Vou dormir". E, meia hora depois, a idéia de que já era tempo de conciliar o sono me despertava: queria deixar o livro que julgava ainda ter nas mãos e assoprar a vela; dormindo, não havia deixado de refletir sobre o que acabara de ler, porém tais reflexões haviam tomado um aspecto um tanto singular; parecia-me que era de mim mesmo que o livro falava: uma igreja, um quarteto, a rivalidade de Francisco I e Carlos V.
Essa crença sobrevivia por alguns segundos ao meu despertar; não ofendia a razão, mas pesava como escamas sobre os olhos, impedindo-os de perceber que a vela já não estava acesa.

Depois, principiava a me parecer ininteligível, como, após a metempsicose, as idéias de uma existência anterior; o assunto do livro se desligava de mim, eu ficava livre para me adaptar ou não a ele; logo recobrava a vista e me surpreendia bastante por estar rodeado de uma obscuridade, suave e repousante para os olhos, porém ainda mais talvez para o espírito, ao qual surgia como uma coisa sem causa, incompreensível, como algo verdadeiramente obscuro. Perguntava-me que horas poderiam ser; ouvia o silvo dos trens que, mais ou menos afastado, como um canto de pássaro na floresta, assinalando as distâncias, me informava sobre a extensão da campina deserta onde o viajante se apressa em direção à próxima parada: o caminho que ele segue vai lhe ficar gravado na lembrança pela excitação de conhecer novos lugares, praticar atos inusitados, pela conversação recente e as despedidas sob a lâmpada estranha que o seguem ainda no silêncio da noite, e pela doçura próxima do regresso.

Apoiava brandamente as faces contra as belas faces do travesseiro que, cheias e frescas, são como os rostos da nossa infância. Riscava um fósforo para ver o relógio. Quase meia-noite. É o momento em que o enfermo, que teve de viajar e ir dormir num hotel desconhecido, acordado por uma crise, se alegra ao distinguir debaixo da porta um raio de luz. Felicidade! Já é dia! Daqui a pouco os criados vão se levantar, poderá tocar a campainha, virão prestar-lhe socorro. A esperança de ser aliviado lhe dá coragem para suportar o sofrimento. Ainda agora pensou ouvir passos; os passos se aproximam e logo se afastam. E o fio de luz que estava sob a porta desapareceu. É meia-noite; acabam de apagar o gás; o último criado já se retirou e é preciso ficar a noite inteira sofrendo sem remédio.

Voltava a adormecer, e às vezes só despertava por um breve instante, suficiente para ouvir os estalos orgânicos do madeirame, abrir os olhos para encarar o caleidoscópio da escuridão e desfrutar, graças a um clarão momentâneo da consciência, do sono em que estavam mergulhados os móveis, o quarto, aquele todo do qual eu não era mais que uma parte ínfima, e a cuja insensibilidade rapidamente regressava. Ou então, enquanto dormia, havia regredido sem esforço a uma era para sempre passada da minha vida primitiva, voltando a encontrar alguns de meus terrores infantis como o de que meu tio-avô me puxasse pelos cachos do cabelo e que se dissipara no dia em que - data, para mim, de uma nova era - os havia cortado. Este acontecimento, eu o esquecera durante o sono, porém sua lembrança vinha-me logo que atinava em despertar para fugir às mãos de meu tio-avô, e por medida de precaução envolvia completamente a cabeça com o travesseiro antes de retornar ao mundo dos sonhos.

Às vezes, como Eva nasceu de uma costela de Adão, uma mulher nascia durante o meu sono, de uma falsa posição de minha coxa. Originária do prazer que eu estava a ponto de sentir, julgava que ela é quem o oferecia. Meu corpo, que no dela sentia o meu próprio calor, procurava unir-se a ele, e eu acordava. O resto dos seres humanos parecia-me algo bem remoto comparado àquela mulher que eu havia deixado momentos antes; minhas faces ainda estavam quentes do seu beijo, meu corpo sentia-se dolorido pelo peso do seu. Se, como às vezes ocorria, ela apresentasse as feições de uma mulher que conhecera na vida, ia dedicar-me totalmente a esse objetivo: encontrá-la de novo, como os que seguem viagem para ver com os próprios olhos uma cidade desejada e imaginam ser possível desfrutar, em uma realidade, o encanto do sonho. Aos poucos, a sua lembrança se esvanecendo, eu esquecia a filha do meu sonho.

Um homem que dorme sustenta em círculo, a seu redor, o fio das horas, a ordenação dos anos e dos mundos. Ao acordar, consulta-os por instinto e neles verifica, em um segundo, o ponto da terra em que se localiza, o tempo que transcorreu até o seu despertar; mas essa ordem pode se confundir e romper. Se, pela madrugada, após uma insônia, o sono vem surpreendê-lo durante a leitura, numa posição bem diferente daquela em que costuma dormir, basta seu braço erguido para parar e fazer recuar o sol, e no primeiro minuto ao despertar já não mais saberá as horas, achando que mal acaba de se deitar. Se adormecer em posição ainda mais desusada e diversa, por exemplo depois do jantar, sentado numa poltrona, então a reviravolta será completa nos mundos fora de órbita, a poltrona mágica o fará viajar a toda velocidade no tempo e no espaço, e, no momento de abrir as pálpebras, julgará estar deitado alguns meses antes, numa região diferente.

Bastaria, no entanto, que eu estivesse dormindo no meu próprio leito e que meu sono fosse profundo, para relaxar-se a tensão do meu espírito; então, este perdia o plano do local onde eu adormecera, e quando eu despertasse no meio da noite, como ignorasse onde me encontrava, nem mesmo saberia, no primeiro instante, quem era; tinha somente, na sua simplicidade primitiva, o sentimento da existência tal como pode palpitar no íntimo de um animal; era mais carente que o homem das cavernas; aí então a lembrança - não ainda do lugar em que estava, mas de outros onde havia morado e onde poderia estar - me chegava como um socorro do alto para me livrar do nada de onde não poderia sair sozinho; num segundo, eu passava por sobre séculos de civilização e a imagem confusamente entrevista de lampiões de querosene, e depois, de camisas de gola virada, recompunham aos poucos os traços originais do meu próprio eu.

Talvez a imobilidade das coisas ao nosso redor lhes seja imposta pela nossa certeza de que tais coisas são elas mesmas e não outras, pela imobilidade de nosso pensamento em relação a elas. A verdade é que, quando eu assim acordava, meu espírito agitando-se para tentar saber, sem o conseguir, onde me encontrava, tudo girava ao meu redor no escuro, as coisas, os países, os anos. Meu corpo, entorpecido demais para se mexer, buscava, segundo a forma do seu cansaço, localizar a posição dos membros para daí deduzir a direção da parede, a situação dos móveis, para reconstruir e denominar a moradia em que se achava. Sua memória, a memória de suas costelas, dos joelhos, dos ombros, lhe apresentava sucessivamente vários quartos onde havia dormido, ao passo que em seu redor as paredes invisíveis, mudando de lugar conforme o aspecto da peça imaginada, giravam nas trevas. E antes mesmo que meu pensamento, vacilante no limiar dos tempos e das formas, tivesse identificado o aposento para reunir as circunstâncias, ele - meu corpo - recordava, para cada quarto, o tipo de cama, o local das portas, o lado para onde davam as janelas, a existência de um corredor, tudo isso com o pensamento que eu tivera ao adormecer e que voltava a encontrar quando despertava. Meu flanco anquilosado, procurando adivinhar sua orientação, imaginava-se, por exemplo, ao longo da parede em um grande leito de dossel, e eu logo me dizia: "Ora, acabei dormindo antes que mamãe viesse me dar boa-noite"; estava então no campo, em casa do meu avô, morto havia muitos anos. E meu corpo, o flanco sobre o qual estava deitado, guardião fiel de um passado que meu espírito jamais deveria esquecer, me recordava a chama da lâmpada de cristal da Boêmia, em forma de urna, suspensa do teto por pequenas correntes, a lareira de mármore de Siena, no meu quarto de dormir de Combray, na casa dos avós, em dias longínquos que naquele momento eu julgava atuais, sem deles formar uma idéia exata e que voltaria a ver bem melhor dali a pouco, quando despertasse completamente.

Depois renascia a lembrança de uma nova atitude; a parede fugia em outra direção: eu estava em meu quarto na casa de Mme. de Saint-Loup, no campo; meu Deus! São pelo menos dez horas, já devem ter acabado de jantar! Devo ter prolongado demais a sesta que faço todas as tardinhas ao voltar do meu passeio com Mme. de Saint-Loup, antes de pôr a casaca. Pois muitos anos haviam transcorrido desde o tempo de Combray, onde, em nossos regressos mais atrasados, eram os reflexos rubros do poente o que eu via nos vidros da minha janela. Bem diverso é o tipo de vida que se leva em Tansonville, na casa de Mme. de Saint-Loup, diverso o tipo de prazer que encontro em só sair à noite, a seguir ao luar os caminhos onde brincava antigamente ao sol; e o quarto onde terei adormecido em vez de preparar-me para o jantar, percebo-o de longe, ao voltarmos, iluminado pelo clarão da lâmpada, único farol dentro da noite.

Essas evocações turbilhonantes e confusas nunca duravam mais que uns poucos segundos; muitas vezes, a breve incerteza quanto ao local em que me achava também não deixava distinguir, umas das outras, as diversas suposições de que era feita, como não podemos isolar, vendo um cavalo na corrida, as posições sucessivas que nos mostra o cinescópio.

Mas ora um, ora outro, eu havia revisto os quartos que habitara na minha vida, e acabava por lembrá-los todos nos longos devaneios que se seguiam ao despertar; quartos de inverno onde, quando estamos deitados, aconchegamos a cabeça com um monte de coisas disparatadas: um canto do travesseiro, a parte superior das cobertas, a ponta de um xale, a beira da cama, e um número dos Débats roses, coisas que por fim começamos a firmar bem, segundo a técnica dos pássaros, calcando-as indefinidamente; onde, num templo glacial, todo o prazer consiste em se sentir separado do exterior (como a andorinha do mar, que faz seu ninho no fundo de um subterrâneo, no calor da terra), e onde, estando aceso o fogo a noite toda na lareira, a gente dorme sob um grande manto de ar quente e enfumaçado, cortado de lampejos dos tições que se avivam, espécie de alcova impalpável, de caverna aquecida, escavada no seio do próprio quarto, região ardente e móvel em seus contornos térmicos, arejada pelos sopros que nos refrescam o rosto e provêm dos ângulos, das partes vizinhas à janela ou distanciadas da lareira, e que se resfriaram: - quartos de verão, onde gostamos de ficar unidos à noite morna, onde o luar, apoiado nos postigos entreabertos, lança até o pé da cama a sua escada mágica, onde se dorme quase ao ar livre, como o abelharuco embalado pela brisa na ponta de um galho; às vezes era o quarto em estilo Luís xvi, tão alegre que até na primeira noite não me sentira muito infeliz, e onde as colunatas que sustentavam levemente o teto se afastavam com tanta graça para mostrar e reservar o local da cama; às vezes, ao contrário, era outro quarto, pequeno e de teto tão elevado, aberto em forma de pirâmide à altura de dois andares e parcialmente revestido de mogno, onde, desde o primeiro segundo, eu fora moralmente intoxicado pelo aroma desconhecido do patchuli, convencido da hostilidade das cortinas roxas e da indiferença insolente da pêndula, que tagarelava bem alto como se eu não estivesse ali onde um estranho espelho impiedoso, de pés quadrangulares, barrando obliquamente um dos cantos da peça, ocupava à força, na suave plenitude do meu campo visual de costume, um lugar que não estava previsto -; onde o meu pensamento, esforçando-se durante horas por se deslocar, por se expandir em altura, a fim de tomar exatamente a forma do quarto e preencher até em cima o seu gigantesco funil, passava noites de muito sofrimento, enquanto eu estava estendido na cama, os olhos erguidos, o ouvido ansioso, as narinas rebeldes, coração palpitante: até que o hábito houvesse mudado a cor das cortinas, fizesse calar a pêndula, derramasse piedade no espelho oblíquo e, mau, dissimulasse, senão expulsasse por completo, o cheiro do patchuli e diminuísse sensivelmente a altura aparente do teto. O hábito! arrumadeira hábil mas bastante morosa e que principia por deixar sofrer nosso espírito durante semanas numa instalação provisória; mas que, apesar de tudo, a gente se sente bem feliz ao encontrá-la, pois sem o hábito e reduzido a seus próprios meios, seria nosso espírito impotente para tornar habitável qualquer aposento.

Certamente, eu estava bem desperto agora, meu corpo havia dado uma última volta e o bom anjo da certeza havia fixado tudo ao meu redor, me deitara sob as minhas cobertas, no meu quarto, e colocara aproximadamente em seus lugares, na escuridão, minha cômoda, a escrivaninha, a lareira, a janela que dava para a rua e as duas portas. Mas, por mais que eu soubesse que não me achava nas residências que a ignorância do despertar me houvera por um instante senão apresentado a imagem nítida, ao menos me fizera acreditar sua presença possível, um impulso fora dado à memória; em geral, não procurava adormecer de imediato; passava a maior parte da noite a relembrar nossa vida de outrora, em Combray, na casa da minha tia-avó, em Balbec, em Paris, em Doncières, em Veneza, em outros lugares ainda, a recordar os locais, as pessoas que ali conhecera, o que delas havia visto, e o que me haviam contado a respeito.

Em Combray, todos os dias desde o fim da tarde, muito antes do momento em que seria preciso me deitar e ficar, sem dormir, longe de minha mãe e de minha avó, o quarto de dormir se tornava o ponto fixo e doloroso de minhas preocupações. Para me distrair nas noites em que me julgavam muito infeliz, haviam inventado de me dar uma lanterna mágica, com a qual cobriam minha lâmpada, enquanto esperávamos a hora de jantar; e, à maneira dos primeiros arquitetos e mestres vidraceiros da era gótica, a lanterna substituía a opacidade das paredes por irisações impalpáveis, aparições sobrenaturais multicores, onde eram pintadas legendas como num vitral vacilante e instantâneo. Porém isso fazia aumentar ainda mais a minha tristeza, pois a mudança de iluminação destruía o hábito do meu quarto, graças ao qual, salvo o suplício de me deitar, ele se me tornava suportável. Agora, não o reconhecia mais e sentia-me inquieto, como num quarto de hotel ou de um chalé, ao qual tivesse chegado pela primeira vez ao descer de um trem. Ao passo sacudido de seu cavalo, Golo, cheio de um desígnio atroz, saía da pequena floresta triangular que aveludava de um verde sombrio a encosta de uma colina, e avançava, aos solavancos, para o castelo da infeliz Geneviève de Brabant.

Esse castelo era recortado conforme uma linha curva que era apenas o limite de uma das ovais de vidro inseridas no caixilho que deslizava à frente da lanterna. Não passava de um muro de castelo e tinha diante dele um campo aberto onde meditava Geneviève, que usava um cinto azul. O castelo e o campo eram amarelos e eu não esperava o momento de vê-los para saber a sua cor, pois, antes dos vidros do caixilho, a sonoridade vermelho-dourada do nome de Brabant mostrara-o em toda a sua evidência. Golo parava um instante para ouvir com tristeza a arenga lida em voz alta por minha tia-avó e que dava a impressão de compreender muito bem, adequando sua atitude, com uma brandura não isenta de certa majestade, às indicações do texto; depois se afastava no mesmo passo sacudido. E nada poderia deter sua lenta cavalgada. Se mexiam na lanterna, eu distinguia o cavalo de Golo que continuava a avançar sobre as cortinas da janela, inflando-se nas suas dobras, afundando-se nas suas fendas. Mesmo o corpo de Golo, de uma essência tão sobrenatural como o da sua montaria, aproveitava todo obstáculo material, todo objeto incômodo que aparecesse, para tomá-lo como ossatura e torná-lo interior, ainda que se tratasse da maçaneta da porta, à qual se adaptava logo, e onde sobrenadava invencivelmente o seu manto vermelho ou seu rosto pálido sempre tão nobre e tão melancólico, mas que não deixava transparecer qualquer inquietude por essa transverberação.

É claro que eu achava um encanto todo especial nessas brilhantes projeções que pareciam emanar de um passado merovíngio e faziam passear a meu redor tão remotos reflexos de história. No entanto, não poderia descrever que mal-estar me provocava essa irrupção de mistério e de beleza no meu quarto que eu acabara de preencher com o meu eu a ponto de não dar mais atenção a ele do que a mim mesmo. A influência anestesiante do hábito passara, e eu me punha a pensar e a sentir - coisas tão tristes. A maçaneta da porta, que para mim era diferente de todas as outras maçanetas do mundo, nisto que parecia abrir sozinha, sem que tivesse necessidade de girá-la, de tal modo se me tornara inconsciente o seu manuseio, eis que servia agora de corpo astral para Golo. E logo que chamavam para jantar, sentia pressa de correr para o refeitório onde a grande lâmpada do teto, sem saber de Golo ou de Barba-Azul, e que conhecia meus pais e o bife à caçarola, espalhava a sua luz de todas as noites; e de cair nos braços de mamãe, que as desgraças de Geneviève de Brabant me tornavam mais querida, ao passo que os crimes de Golo me faziam examinar minha própria consciência com maior escrúpulo.

Infelizmente, depois do jantar eu era logo obrigado a deixar mamãe, que ficava conversando com os outros, no jardim, se fazia bom tempo, ou na saleta onde todos se abrigavam se chovia. Todos, menos minha avó, que achava que "é uma pena ficar a gente encerrada, no campo" e que tinha discussões intermináveis com meu pai, nos dias em que chovia forte, porque ele me mandava ler no quarto ao invés de ficar de fora. "Não é assim que você vai fazê-lo robusto e enérgico", dizia ela tristemente, "principalmente este menino que precisa tanto de forças e de vontade." Meu pai dava de ombros e examinava o barômetro, pois gostava de meteorologia, enquanto minha mãe, evitando fazer barulhos para não perturbá-lo, olhava-o com respeito carinhoso, mas não fixamente para não dar a entender que buscava devassar o mistério da sua superioridade.

Quanto à minha avó, em qualquer tempo, mesmo quando a chuva caía com força e Françoise entrava com precipitação recolhendo as poltronas preciosas de vime para que não se molhassem, era vista no jardim vazio e fustigado pelo aguaceiro, levantando as mechas grisalhas e desordenadas para que sua testa melhor se embebesse da salubridade do vento e da chuva. Costumava dizer: "Enfim, respira-se!", e percorria as aléias encharcadas do jardim, muito simetricamente alinhadas para seu gosto, pelo novo jardineiro destituído do sentimento da natureza e ao qual meu pai havia perguntado desde a manhã cedinho se o tempo iria se firmar - com seu passo entusiasmado e brusco, regulado pelos diversos impulsos que em sua alma excitavam a embriaguez da tempestade, o poder da higiene, a estupidez da minha educação e a simetria dos jardins, mais que pelo desejo, que desconhecia, de evitar as manchas de lama na saia cor de ameixa e que a cobriam até uma altura que sempre faziam o desespero e o problema de sua criada de quarto.

Ao subir para me deitar, meu consolo único era que mamãe fosse me beijar quando já estivesse na cama. Mas durava tão pouco isso, e ela descia tão depressa, que o momento em que a ouvia subir, e depois quando ela passava pelo corredor de porta dupla o ruído ligeiro de seu vestido de jardim, de musselina azul, com pequenos tirantes de palha trançada, era um momento doloroso.

Anunciava o que ia ocorrer a seguir, quando ela me teria deixado, quando voltasse a descer. De modo que essas boas-noites que eu amava tanto, chegava a desejar que viessem o mais tarde possível, para que se prolongasse o tempo de espera em que mamãe ainda não chegara. Às vezes, quando, depois de me haver beijado, ela abria a porta para ir embora, eu queria chamá-la, dizer-lhe "beija-me mais uma vez", mas sabia que ela logo se mostraria zangada, pois a concessão que fazia à minha tristeza e à minha agitação ao subir para me beijar, levando-me aquele beijo de paz, irritava meu pai, que julgava absurdo esse ritual, e ela, que punha tanto empenho em me fazer perder esse hábito, estava longe de deixar que adquirisse o de lhe pedir um novo beijo quando já estava à porta. Vê-la aborrecida, assim, destruía todo o sossego que ela me trouxera um momento antes, quando inclinara sobre o meu leito o rosto amoroso, ofertando-o como uma hóstia para uma comunhão de paz, em que meus lábios saboreariam a sua presença real e o poder de adormecer. Mas essas noites em que mamãe, enfim, se demorava tão pouco tempo no meu quarto eram ainda suaves em comparação com aquelas em que havia convidados para jantar, e nas quais, por causa disso, ela não subia para me dar boa-noite.

 

Novembro de 2010

Autor Desconhecido

Autor Desconhecido question_mark

A frase mais terrível que já li. Sintetiza uma alternativa impossível. Penso nela há décadas.

Eu deveria ter permanecido carpinteiro e tu, árvore!

(Cristo, para sua cruz, no caminho do Calvário,
de um teatrólogo francês)

Muhammad Ali-Haj (1942-1999)

Muhammad Ali-Haj (1942-1999) Muhammad Ali2

Nascido Cassius Marcellus Clay Jr (EUA), é tido como o melhor pugilista de todos os tempos.

Ele é aqui homenageado como o autor do menor poema já escrito da língua inglesa.

Me, We!

Sua origem é controvertida. A mais aceita é narrada no vídeo abaixo. Teria ocorrido durante uma palestra de Ali a estudantes da Universidade de Harvard, que da platéia pediam-lhe em coro e insistentemente para declamar um poema.

Segundo o artigo de Bill Traughber, intitulado "Brash Clay waxed poetic in 1963 visit to Nashville", publicado no The CIty Paper , Nashville (4 June 2002), o poema é grafado como Me — wheee! O segundo fonema é outro, o que altera totalmente o significado oculto da citação anterior. Aquí o verso estaria falando de como é maravilhoso ser como eu. Teria surgido em resposta à pergunta “Quem escreve suas matérias” , durante uma visita à Nashville, em 1963.

Já Eduardo Galeano o menciona como resposta imediata a um garoto que pediu a Ali para recitar um poema.

Alexis-Félix Arver (1806-1850)


Alexis-Félix Arver (1806-1850)
Felix-Arver
Eu o descobri em uma antologia (1) em 1970. Dramaturgo francês, chamado de “poeta de um único poema”, cuja reputação se deve unicamente ao que ficou mundialmente conhecido como Soneto d’Arver. O poema tornou-se um dos maiores clássicos do romantismo francês do século XIX. Arver o escreveu sem título em um álbum de Marie Mennessier-Nodier, filha do escritor Charles Nodier (2). Posteriormente, foi incluído em um livro seu de poesias intitulado “Mes Heures Perdues”. 
O poema foi versado em inúmeras línguas, tendo inspirado diversas peças e livros dedicados inteiramente ao seu desvendamento, motivando extrema curiosidade sobre a musa que o teria inspirado. Ele fala de um amor oculto a uma mulher casada e fiel, possivelmente com algum amigo seu. É considerado, com pouco exagero, uma dos mais belos sonetos já publicados.
Damos destaque às traduções de Henry Wadsworth Longfellow (1807-1882), poeta americano e autor da primeira tradução da Divina Comédia para a língua inglesa, e do poeta Olegário Mariano.

***
         in Mes Heures Perdues (1833)
Ma vie a son secret, mon âme a son mystère,
Un amour éternel en un moment conçu.
Le mal est sans espoir, aussi j’ai dû le taire,
Et celle qui l’a fait n’en a jamais rien su.

Hélas! j’aurai passé pres d’elle inaperçu,
Toujours à ses cotés et pourtant solitaire,
Et j’aurai jusqu’au bout fait mon temps sur la terre
N’osant rien demander et n’ayant rien reçu.

Pour elle, quoique Dieu l’ait faite douce et tendre,
Elle ira son chemin, distraite, et sans entendre
Ce murmure d’amour élevé sur ses pas.

À l’austère devoir pieusement fidèle,
Elle dira, lisant ces vers tout rempli d’elle:
"Quelle est donc cette femme?" et ne comprendra pas
felix-arvers2
***
                     My Secret (Longfellow)

My soul its secret has, my life too has its mystery,
A love eternal in a moment" s space conceived;
Hopeless the evil is, I have not told its history,
And she who was the cause nor knew it nor believed.

Alas! I shall have passed close by her unperceived,
Forever at her side, and yet forever lonely,
I shall unto the end have made life's journey, only
Daring to ask for naught, and having naught received.

For her, though God has made her gentle and endearing,
She will go on her way distraught and without hearing
These murmurings of love that round her steps ascend,

Piously faithful still unto her austere duty,
Will say, when she shall read these lines full of her beauty,
"Who can this woman be?" and will not comprehend.

***
         Soneto de Arver (Olegário Mariano)
Tenho um mistério na alma e um segredo na vida:
Eterno amor que, num momento, apareceu.
Mal sem remédio, é dor que conservo escondida
E aquela que o inspirou nem sabe quem sou eu.

A seu lado serei sempre a sombra esquecida
De um pobre homem de quem ninguém se apercebeu.
E hei de esse amor levar ao fim da humana lida,
Certo de que dei tudo e ele nada me deu.

E ela que Deus formou terna, pura e distante,
Passa sem perceber o murmúrio constante
Do amor que, a acompanhar-lhe os passos, seguirá.

Fiel ao dever que a fez tão fria quanto bela,
Perguntará, lendo estes versos cheios dela:
"Que mulher será esta?" E não compreenderá
***
(1) O Livro de Ouro da Poesia da França (Clássicos de Bolso, Ediouro, 1969), organizado por R. Magalhães Jr. Nessa antologia a tradução (ótima) é de Raul Machado.

 (2) Ver o blog de Chico Miguel: detalhes da biografia e inúmeras referências sobre Felix Arver e seu soneto.

Arthur Rimbaud (1854-1891)


Arthur Rimbaud (1854-1891)rimbaud
Por influência de minha irmã Maria Antonia, Rimbaud me descobriu durante a adolescência, com seu poema Vogais. Não sei porque, mas anos depois eu o lia esporadicamente ouvindo Debussy.
O texto abaixo é necessário para se sentir e ver seus poemas.

  “Acabo de tomar haxixe, e com as pupilas dilatadas vislumbro discos brancos e negros que vêm em minha direção". As reuniões transcorriam alucinantes através das noites, levitadas pelo absinto, ópio e haxixe. Neste insólito lugar, escreve Manhã de Embriaguez. Este poema em prosa (que fará parte das Iluminações) será o crisol alquímico do verso livre e manifesto supremo de espírito dionisíaco que o possuirá por completo. Essas experiências sinestésicas (transmutação de som em cor, poesia, perfume ou vice-versa), já haviam sido profetizadas por Baudelaire em seu antológico ensaio sobre o haxixe e o ópio, Os Paraísos Artificiais. Imerso o tempo todo nestes sublimes estados de percepção, Rimbaud compõe o poema Vogais, inspirado no cromatismo do século XVII e nos antigos tratados de alquimia, como "L´Ars Auriferae", de 1610. Vislumbra no som das vogais seu cristalino espectro cromático : Vogais  
 
                             Voyelles
 
  A noir, E blanc, I rouge, U vert, O bleu : voyelles,
Je dirai quelque jour vos naissances latentes:
A, noir corset velu des mouches éclatantes
Qui bombinent autour des puanteurs cruelles,

Golfes d'ombre; E, candeur des vapeurs et des tentes,
Lances des glaciers fiers, rois blancs, frissons d'ombelles;
I, pourpres, sang craché, rire des lèvres belles
Dans la colère ou les ivresses pénitentes;

U, cycles, vibrements divins des mers virides,
Paix des pâtis semés d'animaux, paix des rides
Que l'alchimie imprime aux grands fronts studieux;

O, suprême Clairon plein des strideurs étranges,
Silence traversés des Mondes et des Anges:
- O l'Oméga, rayon violet de Ses Yeux ! -
 
     
 
                               Vogais
 
  A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul: vogais,
Eu direi algum dia seus natais latentes:
A, negro corpete de moscas reluzentes
Que zombem ao redor de odores lamaçais,

Ilhas sombrias; E, alvor de tendas e ares,
Lanças de gelo, reis brancos, frisson de umbelas;
I, sangue escarrado, riso de bocas belas
Em cólera ou penitência ébria nos bares;

U, ciclos, divino vibrar do verde mar,
Paz dos campos semeados, paz do enrugar
Que a alquimia marca na testa de homens sóbrios;

O, sumo Clarim de estridentes desarranjos,
Silêncios trespassados de Mundos e Anjos:
- Ó, Ômega, raio violeta de Seus Olhos! -
 
 
Trad. de Tomaz Fernandes Izabel
 

Um plágio ou um toque de gênio ??? — Em algum tempo de meus anos de análise interrompida (entre 1970 e 1982) me deparei com uma frase de Rimbaud – Je est a un autre (*) – que está no cerne do lacanianismo. Sem nunca ter perdido o hábito de garimpar, desencavei um comentário de Dominique Combe, que comprova a influência do crítico literário francês Hippolyte Taine, contemporâneo de Rimbaud, nas obras do poeta. Em especial, por ter sido esse crítico que originalmente escreveu a fórmula Je suis un autre”, subvertida por Rimbaud em Je est a un autre.  A substituição do verbo da segunda pela terceira pessoa, isto é, no lugar do outro, revela a complexa simplicidade do gênio de Rimbaud. Ele não menciona a fonte da inspiração. Também Jacques Lacan, não fazendo referência a Taine, torna Rimbaud ainda mais famoso no meio psicanalítico.

***

(*) A frase aparece em uma carta de Rimbaud a Paul Demeny, em 15/5/1871 (in Oeuvres, Classiques Garnier, 1998).

Introdução

Introdução
Acontecimentos que marcaram tempos e lugares. Imagens e ditos benditos e benvindos. Vieram de amigos e parentes, escritores, mitos, músicos, poetas, cineastas, cientistas e filósofos.

Arthur Dapieve. José Saramago, ao olhar a bunda de sua mulher, Pilar, inspira Dapieve na mais perfeita e sintética definição de amor. Um compêndio condensado em uma frase;
Sommerset Maughan. O Fio da Navalha foi um livro que só conta por uma citação da folha de rostro que me levou a ler em seguida os Upanishads e o  Bhagavad Gita.
Julio Cortázar e um texto sobre o beijo, que desencoraja qualquer tentação em se escrever algo semelhante;
José Saramago. O mais puro lirismo erótico de uma primeira noite de amor, que se seguiu à mais longa declaração de amor por telefone que alguém já registrou;
Walter Benjamin. Outro olhar, uma outra visão que desmonta os cânones estéticos;
Calderón de La Barca, que afortunadamente intrometeu-se em meu encontro com Aurora em Madrid;
Djavan e os versos que roubei de  para presentear Jocasta;
Alexander Pope e um poeminha que narra o Gênesis da física moderna, um fiat Newton incomparável;
Anna de Noailles, condessa mundana da Belle Époque, e um curto verso de sete palavras que desafia qualquer tradutor da língua francesa;
Gulherme de Brito e a canção cuja letra me orientava em encontros com pessoas tristes;
Zé Kéti e outra letra, que eu costumava cantarolar, em momentos oportunos, para minhas namoradas adolescentes;
— Euclides da Cunha
e a mais bela página da literatura brasileira;
Guimarães Rosa ficou para sempre com o romance Grande Sertão, Veredas e os contos de Sagarana. O romance..., levei trinta anos para lê-lo como deveria, isto é, palavra por palavra. Sagarana é releitura que se repete com freqüência, talvez pela intimidade que tenho com os sertões e o agreste de Minas Gerais;
Fernando Pessoa e o mar português;
Carlos Drummnd de Andrade. Descobri uns versos de Drummond que seriam, com certeza, uma resposta a outros de Fernando Pessoa;
Inês Pedrosa é uma descoberta recente. Transcrevo dois curtos parágrafos que me levaram a ler vários de seus livros;
Ingrid Borinski, há trinta anos, presenteou-me com sua tradução de Herzstück (Peça do Coração em Um Ato), de Heiner Müller. Uma jóia humorística que é pouco ou quase nada conhecida no Brasil, embora tenha sido traduzida para uma dezena de idiomas;
Ivan Lins. Ao me recuperar de um prolongada depressão, seus versos me mostraram “que a vida pode ser maravilhosa”;
O Cristo Carpinteiro, de autor desconhecido. A frase mais terrível que já lí!
Marcel Proust e John Ruskin. Minhas conexões com ambos e entre eles; de Fernanda Schnoor, me restaram alguns poemas, um breve texto e um postal com a letra da música “A little Kiss each morning”;
John Keats não me passou desapercebido. Lí o longo poema Endymion, mas minha homenagem é feita pela transcrição do primeiro verso (um dos mais belos e famosos da língua inglesa);
Wolfgang von Göethe escreveu uns versos que compunham um mandamento para os estudantes de geologia da Universidade de Viena. Arrisquei uma tradução;
Hector Bianciotti, que me mostrou a diferença entre “l’oiseau” e “el pájaro”
Manoel Bandeira ficou-me inesquecível com sua Passárgada. Quantas vezes eu recitei aqueles quatro versos!!!;
Paulo Mendes Campos. Um vício. É um dos dois autores de quem li toda a obra. Algumas delas ainda em minha mesa de cabeceira;
Oscar Wilde é o outro. Também sempre à mão;
Eduardo Galeano foi leitura obrigatória dos anos 1970. Contestador das injustiças sofridas pelos atormentados povos dos terceiro e quarto mundos. Impossível de resumí-lo. Leiam-no todo. Menciono apenas quatro ditos de um lado seu de humor oportuno. Gostaria de ter escrito essas frases;
Kurt Gödel é aqui acompanhado por Douglas Hofstadter. Gödel, com seu Teorema da Incomplitude, derrubou os alicerces lógicos da colossal obra de Bertrand Russel e Alfred Withehead – Principia Mathematica. Esse teorema hyper-complexo passou a ser accessível ao entendimento do leitor curioso através do livro de Hofstadter – Gödel, Escher & Bach, talvez o livro, livro não, o compêndio mais “rico” que já li. Sempre à mão para consultas constantes;
Edgar Alan Poe e a descoberta de Lenore;
Gilgamesh. Vai e volta, releio o trecho dessa epopéia, o mais antigo texto impresso que se tem notícia. Também ousei levantar a possibilidade de a história desse herói ter influenciado Guimarães Rosa em sua outra epopéia, o Grande Sertão, Veredas;
Pérola Akerman, arquiteta, psicóloga e filosófa, estava inspiradíssima quando conseguiu a proeza de resumir grande parte do ensinamento de Jacques Lacan em um único poema;
— Ligia Karam
, minha mulher, que sempre soube transformar os ditos em feitos e fatos;
Félix Arver, o poeta de um único poema, dos mais famosos do romantismo francês do séc. XIX;
Muhamad Ali e o mais curto poema da língua inglesa. Quatro letras em duas palavras;
— Pablo Neruda
e os dois de seus poemas mais famosos dos Anos Dourados do Rio de Janeiro;
Axel Munthe. Para saber do impacto em se avistar uma fada, leiam o trecho de o Livro de San Michele;
Rainer Maria Rilke e os três versos que me foram segredados por Ieda Inda, porém ela não cumpriu o dito.... e foi o fim de um affair;
Robert Frost. Um verso bastante conhecido do poema The Road not taken,  ajudou-me quando tomei a difícil decisão de ir trabalhar na Guiné Bissau;
Jehovah e o mais universal dos ditos do mais famoso mito da civilização judáico-cristã;
Jacques Lacan e seu dito ilustrado e intrigante, o Nó Borromeano;François Villon, poeta alcóolatra, ladrão, assassino, condenado à forca e banido;
— Joana Narvaez y yo... Yo que no creo en brujas, pero que las hay, las hay!
Tatiana Weihmann, alvejante do meu niver com presença e palavras;
— Li Po
, poeta do século VIII, e um amor cuja “profundidade” jamais foi igualada;
— T.S. Eliot
e seus gatos;
— Isaac Asimov.
O autor mais prolífico de todos os tempos. Um monumento. Publicou 515 livros. Li 77 (ainda em minha estante);
Ezra Pound. Um mestre. A mais precisa e concisa definição de poesia que conheço;
Thomas Friedeman. Uma alegoria de uma tribo africana que resume a vida atribulada e competitiva do mundo globalizado;
Ditos de Maria Antônia, irmã e minha primeira tutora literária;
de sobra, Poesias de Luis Alfredo e, com entrada separada
Maria e José…Nunca Mais!!!

Hoje 4 de janeiro de 2011, ainda faltam: Ligia, Lara, James Joyce, Lawrence Durrel,  Jack Kerouac, Paul Géraldy, Jacques Prevert, Federico Garcia Lorca, Vladmir Maiakovski, Friedrich Nietzsche, Ferreira Gullar, François Villon, e mais…

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